Fala Ferreira

Assim me saúdam os amigos de Guatemala.

O discurso (esclarecedor) de Portas

Ainda muita água vai rolar. E só poderemos entender o que está por detrás desta disputa em torno da TSU depois de vermos todas as suas consequências. O  contexto é claro: se, com o supressão dos subsídios de natal e de férias dos funcionários públicos, Victor Gaspar conseguiu controlar a despesa do Estado, o crescimento económico pífio – com impacto nos impostos arrecadados – abriu o buraco no défice. De repente, o problema voltou-se para o crescimento económico e desemprego.

As medidas em cima da mesa foram três. Por parte do FMI defendeu-se a desvalorização dos salários que, entre outras coisas, incluía a redução da TSU (ver aqui também) para as empresas. Segundo esta notícia (ver PDF incluso), a redução da TSU foi, em outros casos, compensada pelo aumento do IVA. A CGTP e a CIP defenderam a simples redução da austeridade. Na medida em que há uma relação entre défice público e crescimento, a redução excessiva do défice seria a principal causa do descrescimento. Abrandando essa redução, poderiamos, em teoria, voltar a crescer. Mais radicais foram o PCP e António Costa que defenderam mesmo a ajuda do Estado á contrução civil. De facto, foi posto em marcha, por este governo, a transição de uma economia puxada pela contrução civil para uma economia assente nas exportações. No entanto, os exportadores, apesar dos seu bons resultados, partem de um patamar muito baixo para ocupar imediatamente a posição do setor da construção e imobiliário. Consequentemente, é preciso suavizar a “retirada” do deste setor.

Independentemente do grau de acerto destas três posições, estamos de facto frente a uma dicotomia. Para os credores de Portugal, os trabalhadores podem custear o crescimento económico. Para os empresários portugueses – Belmiro de Azevedo expôs isso claramente – os trabalhadores são também consumidores. Portanto, a quebra do consumo esperada elimina o benefício da poupança com a redução da TSU. Melhor seria o Estado aceitar um défice mais elevado. Enfim, melhor seria o Estado – e não os trabalhadores – a arcar com os custos do estímulo ao crescimento. Portanto, a elite económica portuguesa polariza-se entre retirar salarios aos consumidores versus permitir o crescimento do défice. (Falarei das PPPs no próximo post).

O discurso de Paulo Portas confirma a minha hipótese. Ao mesmo tempo que afirma que não ter bloqueado a proposta da TSU para não abrir uma crise nas negociações com a troika, espera agora que o governo (e a troika?) volte(m) atrás. Do mesmo modo, Maria João Rodrigues (no Público de 16-9-11, p. 6) afirma que a alternativa ao aumento da TSU para os trabalhadores é “tirar partido das mudanças que ocorreram recentemente no quadro europeu”, isto é, negociar com a CE e o governo alemão menos austeridade.

Entretanto multiplicam-se as cedências e exigencias dos dois lados (ver a mudança de opinião do Banco de Portugal aqui e aqui). A CE e a troika parecem estar disponíveis para encontrar alternativas à subida da TSU para os trabalhadores. Mas parecem não querer voltar atrás na redução da TSU para as empresas (ver aqui e aqui também). E não é muito claro como o governo pode encontrar soluções para cubir a redução da TSU para as empresas sem afetar o consumo (ver aqui também; aqui a posição da CIP contra o aumento do IVA).

18 de Setembro de 2012 Posted by | Economia, Partidos, Portugal | , , , , , , | Comentários Desativados em O discurso (esclarecedor) de Portas

15s, primeiro comentário

Está cada vez mais claro para mim que a relação dinâmica entre as classes sociais depende da relação igualmente dinâmica entre as frações de cada classe. Assim, se hoje temos centenas de milhares de pessoas protestando (ver aqui e aqui também) contra o governo, isso deve-se ao fato de a classe burguesa ter-se cindido (com consequências nas declarações do PS e do CDS), e as classes trabalhadoras estarem temporariamente unidas. Essa divisão intra-elitária funciona hoje, de modo mais ou menos semelhante à divisão do mundo entre os EUA e a URSS durante as décadas de 1950 a 1980. Independentemente da realidade concreta existente do outro lado do Muro, a existência de dois polos de poder é o melhor antídoto para qualquer teoria das inevitabilidades. Assim, rompido o consenso entre as elites política e económica portuguesa, era evidente que a teoria da inevitabilidade com que Passos Coelho tem governado naufragaria.

Portanto é necessário pensar como as elites política e económica se dividiram. Pode dizer-se, referindo-se, às aparências que o PS se aproximou do PSD nas sondagens. Mas isto é apenas o outro lado da questão: porque os portugueses começam a desconfiar da teoria das inevitabilidades de Passos Coelho, e continuando amarrados ao sistema bipartidário das democracias ocidentais, voltam-se para José Seguro.

Para entender porque a elite se dividiu é preciso voltar às razões da queda de José Sócrates. Como expliquei aqui, a aliança banca + construção civil governou os destinos do país desde o primeiro governo de Cavaco e Silva. Eles fizeram crescer o país até, mais ou menos, o ano de 2004 e, depois, apenas se puderam manter no poder à custa do endividamento do Estado. A crise deu um golpe fatal e os outros capitalistas não estiveram dispostos a sustentá-los através de seus impostos. Com apoio da banca europeia (bem representada pela Comissão Europeia e pelo governo alemão) impuseram um governo novo, mais afim aos interesses dos capitalistas voltados para as exportações, mas também inexperiente.

Em resumo: banca nac. + construção vs. exportadores + banca int.

Não obstante, os exportadores nunca estiveram propriamente no governo. Elegeram um governo ideologicamente afim, mas – como se depreende deste debate – continuaram apenas ocupados com alguns setores do governo (em especial a AICEP e o Ministério dos Negócios Estrangeiros), e não com a sua estratégia como um todo. Pelo contrário, a banca internacional, representada pela troika, esteve bastante próxima do governo. Embora com a atitude peculiar de lavar as mãos das decisões tomadas. (Depois de pressionar o governo a baixar a TSU para as empresas e a reduzir salários, afirmou descaradamente que nunca propôs ao governo fazê-lo). A troika obrigou o governo a controlar a despesa do Estado e propôs algumas medidas experimentais e ineficazes para promover o crescimento. Por outras palavras, ignorando as brincadeiras da troika, a banca internacional só serviu para “garantir” que o Estado português pagava as contas.

A banca nacional, curiosamente, tornou-se o principal aliado da troika. Como comentei aqui, isto deveu-se ao facto de que nenhuma economia sobrevive sem crédito. Por isso, os governos são obrigados a fazer o que os bancos querem. O processo de apoio estatal à recapitalização da banca foi transformado de modo a ser-lhe altamente favorável, o que mostra a evolução da influencia do setor no governo entre meados de 2011 e meados de 2012. A construção civil quase desapareceu sem o apoio do Estado. Ficaram aquelas grandes negociatas (as PPPs) que, por serem uma fonte de rendimento seguro da banca, foram protegidas. (Um empresário, no Facebook, perguntava: como se corta num rendimento da banca que já andamos a subsidiar? Para aumentar nos subsídios o que se poupou nas PPPs?).

Assim, o governo chegou ao poder ideologicamente alinhado com os exportadores, mas não organicamente controlado por eles. Liberalizou o mercado de trabalho; rompeu, até onde pode, o vínculo orgânico entre o Estado e a construção civil + banca (o caso das obras do parque escolar); e passou a fatura do défice para os funcionários públicos. O governo parecia ir no bom caminho. A primeira medida era ideologicamente correta, embora se pudesse duvidar da sua eficácia. A segunda era exatamente a medida necessária – o que prova que a luta se configurava, na subjetividade concreta daqueles que o propunham, como uma disputa intra-elitista. E a terceira transitória mas aparentemente inevitável. Esta inevitabilidade, por seu turno, mostra bem que a luta era objetivamente de facto entre classes, apesar da convicção subjetiva das classes dominantes. Por outro lado, a divisão orgânica das classes trabalhadoras tampouco favoreceu a perceção subjetiva desta luta objetiva: as medidas de austeridade impunham-se a uma fração das classes trabalhadoras incapaz de arrastar atrás de si as outras.

Um ano depois, isto é, em março passado, a política do governo começa a fraquejar. O programa de Passos já não convence por si mesmo, e foi obrigado a apelar à boa imagem de Salazar. Apesar do aumento espetacular das exportações, o aumento do desemprego mostra que a transição de uma economia puxada pela especulação imobiliária para uma economia puxada pelas exportações era inviável… pelo menos de forma tão acelerada. Não obstante, a banca internacional e nacional, neste momento, já estavam organicamente articuladas ao governo. E, apesar de ter permitido a derrapagem atual, manteve os objetivos estritos para os próximos anos. Os empresários que ficaram fora do governo, mais uma vez os exportadores mas não só, já vieram dizer que não há espaço para mais austeridade. Colocar os trabalhadores a pagar a dívida, como o FMI e o governo fizeram, é também tirar clientes aos empresários. Por outro lado, os comentadores na periferia da elite (ver aqui, aqui e aqui), mais ideologicamente que organicamente vinculados com ela, defendem que sim há espaço para mais austeridade, mantém ao pé da letra o programa original de Passos Coelho. Por isso vêm um espaço para mais “austeridade”: a destruição do que resta da antiga aliança entre a Estado/construção civil/banca, isto é, renegociando as PPPs… a despeito do interesse e do poder da banca.

A divisão intra-elitista, e os ataques ao governo que os dois últimos grupos vêm fazendo, abriu a porta à contestação social: colocou meio milhão de pessoas nas ruas. A paz social só pode ser conseguida de dois modos. Ou um dos lados cede, ou vamos a eleições. Mas a banca parece pouco disponível para ceder. Paulo Portas já confessou que a questão da TSU pode conduzir a uma crise entre o governo e a troika. A troika dá uma no cravo e outra na ferradura. Por um lado, alerta para as consequências sociais da medida; por outro, diz que só liberta o dinheiro quando ela for aprovada. Outro dos elementos do discurso de Paulo Portas é a indicação de que o empresariado português ainda tem a esperança que o governo e a troika recuem. Daí que eu prevejo que eles irão atiçar a contestação popular pelo menos no curto prazo. Podem ceder; mas o mais certo é terem brincado com o fogo e as manifestações só terminarem com eleições.

16 de Setembro de 2012 Posted by | Economia, Portugal | , , , , , | Comentários Desativados em 15s, primeiro comentário

A aventura de Passos Coelho

O governo de Passos Coelho foi um governo muito peculiar; em certo sentido foi revolucionário. A fração dominada da classe dominante arrebatou o poder por uns tempos. Os exportadores, em especial a Jerónimo Martins e a Auto-Europa, adquiriram o protagonismo político que até aí era da banca (BES, BPI, CGD…) e da construção civil (Mota Engil, Teixeira Duarte, Grupo Lena…). Essa tensão, refletida na divisão da economia que surgiu então na boca dos comentadores políticos (bens transacionáveis vs bens não transacionáveis), ficou bastante explicita no debate político durante o último ano de governo de José Sócrates.

Esta mudança implicou duas coisas. Primeiro, o apoio de Bruxelas; segundo, a nomeação de gente nova para o governo. A novidade do governo revelou-se primeiro negativamente, com uma série de recusas de notáveis do PSD (com destaque para Manuela Ferreira Leite) em participar dele. Depois, a novidade afirmou-se positivamente, sublinhando o fato da vários ministros terem mais experiência académica e profissional que política. Álvaro Santos Pereira é o arquétipo desta novidade: possuidor de um invejável currículo académico, ficou prisioneiro da sua inexperiência política. As trapalhadas em torno do plano estratégico dos transportes (que afinal era só um calendário de privatizações em powerpoint) e, mais recentemente, em torno dos gestores do metro do Porto deram a prova da sua inexperiência política.

Miguel Relvas era, talvez, o único ministro que está no governo como peixe na água. Foi ele quem distribuiu os jobs pelos boys e os boys pelos jobs no governo, mantendo assim a paix social entre o governo, o partido e alguns lóbies.  Quando as coisas  começaram a correr mal, ele foi o primeiro alvo a abater. É claro que o governo conta com o experiente Paulo Portas, mas… conta mesmo? Finalmente, o núcleo duro do governo é, evidentemente Passos Coelho e Victor Gaspar. A sua experiência política é eminentemente profissional e vice-versa. O Primeiro-Ministro era, até ser eleito líder do PSD, administrador de uma empresa do barão do PSD Ângelo Correia. O Ministro das Finanças era, até entrar no governo, um consultor de várias instâncias europeias. Assim, podemos dizer que estão a meio caminho, em (in)experiência e (falta de) CV, entre o Alvarinho e o Relvas.

Do ponto de vista político e ideológico o governo é radicalmente novo. Obviamente, representa, como disse, uma nova fração da elite económica. Mas é novo não só no conteúdo; é-o também na forma. De Cavaco a Sócrates, os governos legitimavam o interesse de algumas empresas portuguesas através de um discurso neo-keynesiano. Passos Coelho representava outros interesses. Mas no seu caso, foi o discurso liberal que se tornou interessante para aqueles que o puseram no poder. Com Passos, a teoria e os princípios sobrepuseram-se ao discurso… pelo menos enquanto a teoria funcionou. Desde março que as coisas não vinham a correr bem e o governo não teve a experiência política para adequar as suas convicções às circunstâncias. A partir do momento em que a realidade se demonstrou mais complexa que a teoria, a inexperiência política corroeu o governo. Quando as folhas de Excel não chegaram, Passos Coelho cavou o seu túmulo. Isto é, fez o discurso da passada sexta-feira.

Eis o destino dos homens de fora da política.

13 de Setembro de 2012 Posted by | Partidos, Portugal | , , , , | Comentários Desativados em A aventura de Passos Coelho