Fala Ferreira

Assim me saúdam os amigos de Guatemala.

O sufrágio universal contra a democracia

Há algum tempo que venho refletindo sobre o papel que a democracia tem jogado enquanto ideologia conservadora. Em 2011 escrevi este pequeno texto. Em resumo, eu pego nas reflexões de Pierre Bourdieu sobre o conservadorismo do jornalismo e o aplico aos partidos. Quem ler atentamente verá que eu estou a criticar, sobretudo, o PS em oposição ao PCP. Recentemente eu voltei-me para leituras que me permitissem aprofundar esta hipótese. Recentemente li Cinismo o falência da crítica (V. Safatle) que tenta explicar porque as pessoas aderem a uma ideologia na qual não acreditam. Páginas tantas escrevi este texto. Logo depois, li Estado de exceção (G. Agamben) e estou lendo Bonapartismo e democracia (D. Losurdo). É o cruzamento entre estas duas últimas leituras que quero partilhar a reflexão que se segue.

Ambos concordam que nos dias de hoje o voto deixou de influenciar a políticas. O poder do governo é tanto que pode decidir o que lhe prover sem que as eleições possam interferir nessas decisões. Ambos estão de acordo que isso se deve ao fato do poder executivo ter assumido funções que antes competiam ao legislativo. E, assim, a única decisão que é tomada democraticamente é a escolha do “ditador”. O lugar da disputa de ideias foi tomado pelo carisma de uma personalidade. Por fim, ambos apontam o governo de Franklin Roosevelt como modelo acabado desta nova forma de fazer política.

O desacordo começa por ser teórico-metodológico. Agamben é foucaultiano. Logo, a sua análise supõe uma história contínua de transformação de ideias. A oposição entre “Estado de direito” e “Estado de sítio”, clara na Revolução Francesa, foi-se apagando. Hoje, vivemos num Estado onde o direito é ultrapassado em nome do direito sem que o “Estado de sítio” necessite de ser formalmente declarado. Compreende-se então porque a chave desta transformação é a perda de poder do legislativo: elegemos executores que também legislam e legisladores que, no melhor dos casos, entretêm o povo. É assim também que o carisma do político se sobrepõe à decisão da política a ser seguida. A definição da lei torna-se uma tarefa secundária em relação a execução da lei.

Losurdo é marxista. Para ele a história das ideias não é linear mas avança ao sabor da luta de classes. Seu livro não é tão claro acerca da “natureza” dessa mudança, mas é mais claro sobre o seu processo. A expansão do sufrágio universal, na segunda metade do séc. XVIII e no séc. XIX, correu par e passo com o temor da classe dominante. O voto dos “não proprietários” (dos trabalhadores) não teria outro efeito senão o confisco da propriedade privada. Somente um executivo forte, suficientemente distante dos eleitores, suficientemente carismático (comparável a um monarca), poderia “controlar” dos trabalhadores. Este modo de fazer política começa a ser desenhado nas duas últimas décadas do séc. XVIII. Losurdo sustenta este argumento com artigos de opinião e editoriais de jornais que acompanharam a redação da Constituição Federal norte-americana em 1787.

A abordagem de Losurdo permite sustentar um argumento que eu já vinha defendendo. A transformação da Política em politica fetiche, a passagem do debate de ideias para o debate de pessoas, deu-se com o fim ou a desqualificação das organizações intermediárias entre o “povo” e o governo. A produção de ideias pelos sindicatos e outras organizações de interesse foram combatidas – em nome da “vontade genuína” do indivíduo – para dar passo à propaganda do carisma do candidato. A transformação dos partidos é concomitante da subordinação do executivo ao legislativo. Os partidos começaram por ser “máquinas” de propaganda de ideias que lhe permitiam chegar ao legislativo. Hoje são simples máquinas de propaganda de candidatos que buscam chegar ao executivo. – Losurdo mostra como os Pais Fundadores dos EUA estão perfeitamente conscientes do “perigo” do debate de ideias na Assembleia Legislativa e é por isso que reforçam os poderes executivos.

O preço a pagar por isso é o fascismo soft em que vivemos atualmente.

20 de Julho de 2013 Posted by | Ideologia | , , , | Comentários Desativados em O sufrágio universal contra a democracia

Cavaco vs Soares

É curioso como a cena política destes dias foi dominada por uma geração que parecia ter deixado a política. Cavaco quase não falou; Soares reclamou um pouco mais. Mas o que disseram Passos, Seguro e Portas foi muito menos importante.

Cavaco passa a vida calado; mas quando fala cai o Carmo e a Trindade. Santana Lopes e José Sócrates que o digam. Passos Coelho também não deve andar feliz. No entanto, como disse alguém, ele não fala para os cidadãos comuns; é necessário que venham os “cavacólogos” às televisões explicar o que Cavaco quer. E quem melhor esclareceu o que Cavaco quis foi Joaquim Aguiar: Cavaco queria os votos favoráveis do PS para o OE de 2014. Assim, conseguindo dois terços dos votos, o Orçamento de Estado ultrapassa a Constituição da República Portuguesa. (A própria Constituição prevê que uma lei anti-constitucional possa entrar em vigor se alcançar tantos votos quantos aqueles necessários para alterar a Constituição. [Adendo: Uma vez declarada a inconstitucionalidade, a lei, ou o OE, poderá entrar em vigor se confirmada – votada novamente – por 2/3 dos deputados presentes na sessão – CRP Art. 279 § 2]). Em troca do apoio do PS, o governo aceitava fazer as malas um ano mais cedo.

Do ponto de vista do curto prazo, isto é, para garantir a estabilidade do compromisso com a troika até ao final do programa, Cavaco encontrou a saída mais inteligente. O Tribunal Constitucional deixaria de ter voto na matéria. O risco seria o de levar, a médio prazo, à PASOKização (isto é, a uma fragmentação do PS como aconteceu com o PASOK) do PS (ver aqui também). E Soares sabe muito bem que é  o PS que impede o crescimento do PCP. Assinar o acordo com o governo seria entregar a liderança da oposição a Jerónimo de Sousa – algo que van Zeller já tinha dito, na noite eleitoral de 2011, ser demasiado perigoso.

E claro, o PCP mostrou-se capaz, com a ajuda dos Verdes, de liderar essa oposição. Primeiro, os Verdes tiraram a moção de censura da cartola. Depois, o PCP pediu um conjunto de reuniões que opondo-se aquelas apadrinhadas por Cavaco, tinham tudo para redefinir a divisão comumente aceite entre direita e esquerda. O PCP tomou tanto a dianteira na oposição ao governo de salvação nacional que obrigou o BE a meter duas vezes os pés pelas mãos. Primeiro, pedindo uma reunião com o PS (ver aqui também) e depois escrevendo um vários de textos sectários contra o “sectarismo” do PCP.

Soares venceu Cavaco – fracassou o acordo de “salvação nacional”. A elite portuguesa continua com problemas de curto prazo para resolver. Vem aí, talvez, mais um Orçamento de Estado inconstitucional. Mas Soares e Cavaco vão dormir ambos tranquilos: a alterne do sistema político em Portugal foi preservado.

20 de Julho de 2013 Posted by | Partidos, Portugal | , , , , | 1 Comentário