Fala Ferreira

Assim me saúdam os amigos de Guatemala.

A imprevisibilidade de Trump

O apoio irrestrito a Israel anunciado ontem por Trump diz muito do político que mora na Casa Branca. Ele toma os problemas complexos pelas suas partes, ignorando tempestivamente a suas inter-relações. Sobre o Oriente Médio, Trump já prometeu fazer duas coisas incompatíveis com esta: a) encontrar uma solução para a Síria junto com a Rússia e b) assegurar um maior envolvimento financeiro da UE neste “policiamento do mundo” (eis o que está por detrás das suas polêmicas declarações acerca da NATO). Ambas as promessas eleitorais colidem com este c) apoio irrestrito aos tradicionais aliados do “Ocidente”: Israel e Arábia Saudita. (A primeira intervenção externa dos EUA na era Trump foi contra os rebeldes no Iêmen, que tentam derrubar o Presidente pró-saudita.)

Ora, por razões diferentes, a Europa e a Rússia não podem subscrever uma política para o Oriente Médio assente neste apoio irrestrito a Israel e à Arábia Saudita. Pois, a Europa mantêm-se alinhada com a política do Obama de pretender um determinado equilíbrio regional que permita o “Ocidente” reduzir a sua intervenção (e os gastos a ela associados) no Oriente Médio, sem, com isso, deixar a região à mercê de Putin. Já a Rússia quer ter um protagonismo maior na política daquela região; mas o seu principal aliado é o governo iraniano, arqui-inimigo dos sauditas. Ao tomar esta decisão de ignorar a pretensão palestina de criar um Estado nacional, Trump coloca obstáculos claros a realização das suas duas promessas de campanha. E mesmo a aproximação à Rússia é incompatível com a exigência feita à Europa de mais dinheiro para a NATO. Afinal, o primeiro desejo da Europa é não depender da Rússia para ter acesso ao petróleo e gás natural do Oriente Médio.

Numa primeira análise, prever Trump implica i) mapear os problemas que ele têm na agenda e como ele os desmonta; ii) esperar para ver qual o primeiro que ele decide resolver (na sua forma radical de tomar decisões) e iii) antever as consequências dessa solução nas demais partes do problema. Por exemplo, este apoio irrestrito dos EUA a Israel e Arábia Saudita irá, em primeiro lugar, aumentar a despesa militar norte-americana na região; e, apesar dos apelos da Casa Branca, a Europa não virá ajudar a pagar a conta. Pior, enquanto os EUA não combaterem diretamente, mas se limitarem a financiar os exércitos israelita e saudita, a Rússia não terá pudor em financiar o Irão provocando uma escalada militar. A médio prazo, Trump terá de inventar dinheiro para colocar men on the ground. Enfim, a política de Trump, não só para o Oriente Médio, mas também para a governança global e interna, poderá ser antecipada pelos seus primeiros passos comprometedores.

Mas há também outra possibilidade. Deparando-se com os problemas criados pela primeira medida, Trump pode recuar criando um vácuo político. A imprevisibilidade será maior, porque a globalização dependerá menos da ação de Trump do que das reações dos demais países ao seu governo errático. Neste sentido, teremos de aprender a desviar o olhar e começar a compreender a dinâmica dos modelos de governança regionais.

16 de Fevereiro de 2017 Posted by | Mundo | , , | 2 comentários

A era do petróleo barato

Há 3 anos atrás era comum ouvir “a era do petróleo barato acabou”. A estratégia da Shell, elaborada em 2008 e revista apenas em 2016, assentava nisso. Durante as últimas duas semanas e meia dediquei-me a estudar a geopolítica do petróleo com vistas a um trabalho que não chegou a acontecer. Assim que resolvi partilhar aqui as conclusões preliminares.

A minha “investigação”, baseada em material que fui encontrando na internet, visava explicar dois momentos do preço internacional do barril de crude (ver gráfico abaixo). Primeiro, a ascensão dos preços entre 2002 e 2014; depois, a queda repentina entre agosto de 2014 e o momento atual. Esta queda é importante porque o aumento dos preços das commodities foi um dos processos por meio dos quais a riqueza se deslocou da Europa e EUA para os países de desenvolvimento médio como o Brasil. A sua inversão recente encerra uma tendência que ditou, durante 12 anos, os rumos da geopolítica mundial tão cheia de incógnitas agora (com Trump na Casa Branca e sem fatores econômicos nos quais assentar uma previsão).

oilprices

Inventariei quatro fatores para justificar a subida e mais quatro para explicar a queda. São eles: o aumento da demanda chinesa, o pico de Hubbert, a desvalorização do dolar e os conflitos no Oriente Médio (particularmente a guerra civil na Líbia) para a subida; e o abrandamento do crescimento chinês, o desenvolvimento de formas de produção não convencional de petróleo, a revalorização do dólar e a crise da OPEP para explicar a queda.

Estes fatores, mesmo que considerados em simultâneo, pareceram-me insuficientes. Uma resposta muito mais convincente – para justificar a subida e capaz de explicar a queda – encontrei-a no livro de Nizan e Bichler, The global politial economy os Israel (download gratuito no site dos autores). No capítulo 5, os autores argumentam que o preço do petróleo é historicamente determinado não tanto pelos conflitos no Oriente Médio, mas pelo temor dos investidores em relação à possibilidade do conflito, o que outros chamam de “prêmio de risco“. Os demais fatores serviram apenas para gerar, nos mercados financeiros, outros “prêmios” capazes de elevar o preço. Pelo menos é essa a perspetiva de Bridge e Wood acerca do efeito a teoria do pico de Hubbert: o que fez aumentar o preço do barril de petróleo não foi a escassez física das reservas predita pela teoria, mas a perspetiva dessa possibilidade nos mercados financeiros.

Se Nizan e Bichler têm razão e o “prêmio de risco”, decorrente da possibilidade de conflitos no Oriente Médio, que segue bem viva, foi o grande motor da alça de preços do petróleo, não apenas entre 2002 e 2014, mas desde 1973, então é muito fácil explicar a queda do preço que se seguiu a 2014. Foram “descobertas” grandes jazidas de petróleo no continente americano (Canadá, Venezuela e Brasil), cuja situação política não permite cobrar um “prêmio de risco”.

Para ser mais exato, é bom lembrar que essas reservas não foram verdadeiramente “descobertas”. No entanto,as novas jazidas só passaram a ser contabilizadas a partir do momento em que foi criada tecnologia capaz de extrair delas petróleo a um custo aceitável. Vale lembrar que, no caso do Canadá e da Venezuela, o petróleo não existe aprisionado em bolsões no subsolo, mas forma uma película em torno de areias desde a superfície até algumas centenas de metros de profundidade. A tecnologia para separar a areia do petróleo, em escala industrial, foi inventada no final da década de 1990. Já no caso do Brasil (e em outras áreas cuja exploração agora se inicia: Golfo do México e África Ocidental) os bolsões de petróleo se encontram a tão elevada profundidade que, até 2010, eram inalcançáveis. Essa profundidade varia entre 5 mil e 8 mil metros (1-2 mil metros de água e 4-6 mil metros de solo marinho).

10 de Fevereiro de 2017 Posted by | Economia, Mundo | , , | 1 Comentário

Trump e a geopolítica

Não é fácil resumir o que penso sobre Trump, antes pelo contrário. Poderia dizer que ele não vai mudar nada e, ao mesmo tempo, vai mudar tudo. Não vai mudar nada por três razões. Primeiro, como marxista, sei bem que um Presidente tem os seus poderes muito limitados. O seu papel é colocar os pontos nos iis (como dizia Hegel). Isto é, as verdadeiras decisões surgem na luta de classes ou – em termos liberais – como compromissos possíveis entre os diferentes grupos de interesse, tendo em conta o poder relativo de cada grupo. No entanto, tais decisões são executadas com menos resistência dos perdedores quando escondem a sua verdadeira natureza, isto é, quando surgem não como resultado desse confronto na sociedade civil, mas antes enquanto decisão arbitrária de um indivíduo legitimado para tomá-la. Logo, uma mudança de Presidente no hegemon da ordem mundial existente não implica, imediatamente, mudanças geopolíticas de fundo, dado a capacidade limitada de um indivíduo, seja quem for.

Em segundo lugar, como muita gente lembrou após a sua vitória eleitoral, os EUA têm (em teoria) uma Constituição forte e feita para limitar os poderes do seu Presidente. Boa parte do poder de Estado está em cada um dos Estados da federação e no Congresso. Trump terá pouco espaço para grandes mudanças. Em terceiro lugar, as propostas radicais de Trump, afinal não o são. Obama foi o Presidente que mais deportou e o muro na fronteira com o México está em construção há muito tempo. Não se trata apenas de considerar que o governo de Trump está amarrando a constrangimentos sociais e institucionais, mas também notar que (como afirmou Zizek) a sua linguagem ordinária serviu apenas para mascarar um programa que nada trouxe de extraordinário e novo.

Se Trump pode mudar tudo, apesar do pouca margem de decisão que o presidente eleito, enquanto indivíduo, tem é porque Obama soube usar a sua para mudar radicalmente o tabuleiro geopolítico. Os seus efeitos podem parecer parcos; no entanto, ele inverteu uma tendência com quase 20 anos. Essa tendência foi o tema de um livro de Giovanni Arrighi. Segundo ele, o boom econômico da década de 1990, causado pela especulação imobiliária, escondeu o abrandamento do dinamismo da maior economia do mundo. E essa performance econômica decepcionante deu origem a uma tendência de perda gradual da sua influência geopolítica a partir do ano 2000.

W. Bush quis recuperar a economia e o status do país tirando partido do seu papel de polícia do mundo. Para explicar o que está em jogo, Arrighi contrapõe a guerra do Golfo à invasão do Iraque. Em ambos os casos, os EUA colocaram tropas no Iraque e, cerca de um ano depois, promoveram uma ronda de negociação com países amigos para pedir apoio financeiro à empreitada. Mas o significado dessa ronda de captação de recursos foi inteiramente distinta de um caso para o outro. No primeiro caso, a intervenção militar foi uma ação decidida por todos os parceiros: o mais forte, isto é, com mais capacidade militar, agiu e, depois, dividiu a conta pelos sócios. No segundo caso os EUA atuaram como literalmente como polícia: não apenas decidindo unilateralmente onde e quando intervir, mas também procurando instituir a obrigatoriedade da contribuição (uma espécie de imposto) para os países ricos. Ou seja, a saída encontrada por W. Bush para o declínio econômico passava, portanto, por colocar tropas ao redor do mundo e cobrar aos demais países pela segurança que isso garantia – claro, com enormes proveitos para a sua indústria bélica.

O resultado da segunda guerra do Iraque, herdado por Obama, foi desastroso. O apoio dos países ocidentais à guerra foi pouco mais que formal; a contribuição financeira ficou muito abaixo das expectativas. Assim, em vez de se apresentar como uma solução para o declínio econômico do hegemon mundial, a guerra do Iraque, com seus custos exorbitantes, acelerou-o. Prova disso foi o aumento dos preços de todas as matérias-primas no mercado mundial a partir de 2004, puxado pela elevação do preço do petróleo. No período, surgiram muitas explicações para esse crescimento do preço do crude, como, por exemplo, o aumento da demanda chinesa, a instabilidade política no Oriente Médio e o famosos pico de Hubbert. Recordo, no entanto, de ter lido uma explicação alternativa. Não era o petróleo que valorizou, mas o dólar que desvalorizou. A eclosão da crise em 2008 só veio acelerar uma tendência de desvalorização das economias ocidentais, patente na valorização das suas importações (matérias-primas), que não pode ser desligada da desvalorização correlativa das suas exportações.

Obama pareceu mais preocupado com a política interna do que externa, aceitando as regras do jogo pelo menos entre 2009 e 2014 (isto é, até aos dois últimos anos do seu mandato). Iniciou a retirada do seu exército do Iraque. Não me parece que a sua intervenção tenha sido determinante para iniciar os golpes palacianos que ocorreram na América Latina durante os seus governos nas Honduras; no Paraguai e no Brasil. (Devo reconhecer que não conheço bem os acontecimentos ocorridos no Paraguai e que, nas Honduras, o desfecho teria sido outro sem a intervenção da Casa Branca. Quanto ao Brasil, embora não duvide do financiamento norte-americano aos movimentos pró-impeachment, não o considero relevante para explicar o curso dos acontecimentos.) Como tal, viu crescer dois adversários geopolíticos sentados em cima de reservas energéticas: Hugo Chavez, Vladimir Putin e Kadafi.

As relações de Moscow com Berlim tornaram-se perigosas para o futuro da União Europeia e para os interesses da Casa Branca. Putin contruíu dois gaseodutos entre o Oriente Médio e a Europa, fazendo da empresa estatal russa Gazprom o principal fornecedor de gás natural à Europa; mais, ofereceu parte do capital da empresa a um grupo de investidores alemães para estimular o interesse dos europeus no negócio. Um site de esquerda, dedicado à geopolítica, anteviu o fim da União Europeia. A Alemanha, cada vez mais voltada para Moscow, tarde ou cedo, entraria em rota de colizão com os interesses atlânticos da França e Inglaterra.

Nesse contexto, Obama agiu! E fê-lo de forma inteligente e inesperada. Primeiro, aproveitou os protestos dos jovens egípcios, em 2011, e estendeu-os a outros países como a Síria e a Ucrânia, por forma a atrasar os negócios de Putin. Assim, os serviços secretos norte-americanos garantiram dois anos à Casa Branca para mostrar a sua maestria político-econômica. Primeiro, reduziu a quase zero as importações de petróleo, graças à duplicação da produção doméstica de petróleo e de energia a partir de xistos betuminosos; depois, pôs fim ao embargo ao Irão, aumentando drasticamente a produção mundial. Assim, esta redução importante da procura (os EUA continuam sendo o maior importador mundial de petróleo) e aumento espetacular da oferta fez cair o preço do barril de mais de 100 dólares para menos de 40. De uma só paulada, Obama matou dois coelhos. Por um lado, passou boa parte da crise econômica do capitalismo do centro para a periferia. A tímida recuperação de Portugal em 2015 (aqui também), bem como o caos econômico que se vive no Brasil, pode ser atribuída a isso. Por outro, deu um rude golpe na economia de dois adversários geopolíticos: a Venezuela e a Rússia.

As declarações do candidato Trump acerca da NATO mostram um regresso à estrategia de W. Bush, quer dizer, à pressão sobre a Europa para pagar os custos do policiamento do mundo. Mostram que ele não entendeu a estratégia de Obama (mas , à primeira vista, Hillary tampouco). E isto ocorre em um momento que a Rússia dá passos firmes para voltar a elevar o preço do petróleo. Por isso, tudo me leva a crer que o novo presidente dos EUA irá desfazer tudo o que o seu antecessor fez e recolocar a hegemonia do país sobre o resto do mundo na trajetória descendente que conhece desde os anos 2000.

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Algumas notícias sobre pontos a verificar no futuro:

Trump could send a shockwave through natural gas markets

The largest oil deposit ever found in America was just discovered in Texas

Merkel oferece a Trump colaboração e mais gasto militar

13 de Novembro de 2016 Posted by | Economia, Mundo | , , , , | Comentários Desativados em Trump e a geopolítica

O que é que Cunha e Doria têm em comum com a abstenção?

Em 2013, publiquei neste blog um texto com o título “O que é que Isaltino e Rui Moreira têm em comum com a abstenção?”. Eu pretendi desenvolver uma análise teórica sobre a abstenção a partir da realidade portuguesa. Hoje noto que ela se aplica integralmente ao Brasil. É apenas necessário substituir Isaltino Morais por Eduardo Cunho; Rui Moreira por João Doria e a abstenção portuguesa pela brasileira.

Eis o texto:

O que é que Isaltino e Rui Moreira têm em comum com a abstenção?

1. Cada vez estou mais convicto que existe um elo de continuidade entre a “democracia burguesa” (i. é, a democracia baseada no sufrágio universal, num quadro institucional em que o poder executivo ofusca o poder legislativo) e o fascismo. Vamos por partes. Porque razão vale destacar estas duas caraterísticas do sistema político atual – o sufrágio universal e a importância do poder executivo? Porque, como eu argumentei aqui e aqui, elas tendem a transformar o sentido da política. A política – e, nela, o voto – tem por objetivo escolher uma entre várias ideias de como resolver um problema coletivo. A escolha entre pessoas é um meio para alcançar esse fim. Ora, a política se transformou numa disputa entre pessoas (entre meios) que exclui a discussão dos fins! Qualquer pessoa sabe isto e reconhece que entre dois candidatos há, no máximo, diferenças no modo de levar a cabo a mesma política. A questão é: é legítimo imputar-se àquelas duas caraterísticas do sistema político esta transformação?

1.1. Ora, o açambarcamento das potestades do legislativo pelo executivo, diz Agamben, tem como consequência a criação de um permanente “estado de exceção” onde a lei deixa de valer em nome da urgência e da emergência da situação. A lei é a voz do governo; e a única lei válida é a que diz como se escolhe o governo. Por outras palavras, o debate legislativo, que fazia leis discutindo projetos de sociedade (ideologias), se esbate e dá passo aos desmandos de um executivo com poder de legislar provisoriamente, por decreto, frente a contingências e conjunturas. Assim, deixa de estar em jogo o debate sobre o que queremos para o futuro do país; passa a estar em jogo quem é a pessoa mais bem preparada para tomar todas as decisões face às urgências e emergências nacionais.

1.2. Acrescenta Losurdo que, longe de esta transformação resultar de um travessura de Clio, resulta da ação consciente e confessa das elites contra o crescimento dos partidos operários ao longo do séc. XIX, com a expansão do sufrágio universal. A única maneira de travar o crescimento de partidos de massas, à medidas que os operários ganharam o direito de voto, foi oferecer às massas lideres carismáticos que faziam lembrar os reis absolutistas de quem toda a política dependeu no séc. XVIII. Isso implicou reduzir a importância do poder legislativo, lugar por excelência da disputa ideológica, passando o seus poderes para o executivo, ao qual só candidatos com campanhas milionárias podem chegar.

1.3. Ao mesmo tempo, como eu argumentei aqui, os políticos profissionais servem à burguesia porque servem-se a si mesmos. Apostar nas suas qualidades pessoais, no seu carisma, permite ao candidato procurar votos em todos os quadrantes ideológicos. Apostar nas suas ideias, ou num projeto societário (ideologia), implica agradar a uns e desagradar a outros; perder votos entre os últimos sem necessariamente ganhar votos entre os primeiros. Daí que os políticos optem por apostar na sua imagem (e no marketing). Estas três dinâmicas favorecem os partidos catch-all que dão mais importância à gestão do status quo que à disputa de ideias.

2. O resultado desta mudança na forma de fazer política é duplo. As opções entre os caminhos a ser seguidos pelo governo ficam fora das campanhas eleitorais. Vale recordar Durão Barroso em sua campanha para Primeiro-Ministro de Portugal: “A Europa é um assunto demasiado sério para serem debatido numa campanha eleitoral”. Os temas importantes passam a ser debatidos nos corredores dos palácios, entre políticos profissionais e os lobbys. Outro efeito, menos visível, é a subtração, aos eleitores, das informações necessárias para poderem compreender as opções políticas do governo. Se os cidadãos não ouvem os políticos discutir as opções que o governo tem pela frente, mas apenas as idiossincrasias deste ou daquele ministro, como vão saber o que está em jogo nas decisões políticas? Nos jornais, que nada mais fazem que ecoar o modo de fazer política que venho descrevendo? Certamente que não!

2.1. Em resultado da forma do debate político, impõe-se aos eleitores uma grelha de avaliação dos candidatos que opõe o “competente” ao “corrupto”. Mas estas qualidades são pessoais e difíceis de (re)conhecer em quem não se conhece pessoalmente. E muito mais difíceis de reconhecer em políticos enfeitados pelo marketing eleitoral. Em política parecer é tudo! Consequentemente, para os eleitores, (a) os políticos são todos iguais: (b) quando as coisas correm bem, eles são tomados como “competentes” (a tese do ‘rouba mas faz’); se corre mal, é porque são corruptos. Vale lembrar, as informações de contexto que permitiam melhor avaliar os políticos, as informações sobre o seu leque de opção, foram subtraídas do debate político.

2.2. A ideia que os políticos são todos iguais e são todos corruptos permite aos cidadãos conviver com este facto: eles não possuem competências para agir politicamente, embora não por demérito próprio. Foram-lhe subtraídas as informações necessárias. E é esta ideologia (no sentido técnico da palavra), segundo a qual os políticos são todos corruptos, que permite aos eleitores caminharem convictamente para a abstenção, elegerem “independentes” ou votar em quem rouba mas faz. Quem não tem recursos para agir dentro da política, porque (vale repetir) lhe foram subtraídos, vai para fora da política, não quer saber de política (esse “antro de corrupção”), ou procura falsas tábuas de salvação que parecem vir de fora da política.

2.3. Se é assim, Daniel Oliveira está enganado. Não é a ausência de solidariedade que levou os cidadãos de Oeiras a eleger o delfim de um político corrupto; é porque, para os eleitores, todos os políticos são corruptos. Desse modo, a corrupção deixa de ser um critério pertinente de avaliação dos candidatos. Mas estão enganados também aqueles que, por uma ou outra via, acreditam que a eleição de independentes assinala o marasmo dos partidos. Os partidos não esclerosam; tornaram-se máquinas de propaganda adaptadas ao atual sistema eleitoral e político. Eles não caducaram; são exatamente naquilo que o sistema político lhes exige: aparelhos que fabricam o “carisma” de seus candidatos! (É também por esta razão que as listas independentes são uma não solução. Como vencer eleições sem ser eleitoreiro? … sem se tornar uma máquina para enfrentar campanhas eleitorais?).

3. No conjunto, falamos do aparecimento da “política fetiche”: uma política onde a escolha dos meios (de candidatos) aparece desligada da escolha dos fins (projetos societários). Onde o debate político é centrado na “competência” e na “ética” dos candidatos e não no leque de opções políticas existentes. Mas também onde a competência e a ética dos candidatos são impossíveis de avaliar – porque ampliadas pelo marketing político, mas sobretudo porque não é possível avaliar as escolhas dos políticos sem conhecer as alternativas. Uma política onde o discurso moralista dirigido para lado nenhum leva as pessoas a sair da política (têm-se orgulho em não perceber de política) ou a confiar em anti-candidatos.

3.1. A esquerda tem reagido de duas maneiras ao avanço da “política fetiche”. a) A sua ala mais moderada tem participado nesta “política fetiche”; de fato, tem sido convertida por ela e aderido a ela. Ainda que não explorem a “política fetiche” com o oportunismo de Rui Moreira, a sua simples existência já reforça este movimento de natureza, como irei já argumentar, fascista. b) Outra esquerda, supostamente radical, aplaude a saída dos cidadãos da política (ver aqui também) como uma crise do sistema político burguês. Infelizmente não se trata de uma crise d”o” sistema político burguês, mas de uma modalidade de organização política da sociedade burguesa. Existem alternativas de sobrevivência do capitalismo para além da social-democracia – o fascismo é uma.

3.2. Um terceiro erro da esquerda, sobretudo da esquerda partidária, é atribuir esta crise da democracia a uma crise dos partidos da burguesia. Uma posição que entende a abstenção é fruto das inúmeras promessas não cumpridas dos partidos de direita; uma posição, segundo a  qual, existe uma tremenda injustiça em colocar os partidos de esquerda no mesmo saco. Esta posição é totalmente equivocada. O anti-partidarismo se manifesta, em primeiro lugar, contra os partidos de esquerda, de forma tanto mais radical quanto mais estes são consequentes. Para quem foge, orgulhosamente, da política para a abstenção, existe maior equívoco que levar a política para toda a parte? Para quem espera, sebastianicamente, uma salvação para a política que venha de fora dela, há maior pecado que levar a política para fora dela? Eis a origem do caráter fascista do anti-partidarismo.

3.3. O fascismo é, desde Dimitrov, analisado por aquilo que ele se tornou: um sistema político de governo direto da burguesia financeira, com ajuda do exército. Mas esta é só a sua “aparência” (no sentido marxista) – este é só um momento de um processo. A sua essência é esse processo que tem três fases: a agitação da “massa” (desorganizada) contra a classe trabalhadora; a chegada ao poder e a apropriação do movimento pela banca; e, finalmente, a sua decadência, quando deixou de servir à burguesia financeira e, por isso mesmo, esta deixou os líderes fascistas à sua sorte. É certo que, desde o início, que a burguesia financiou os partidos fascistas; mas no primeiro momento teve dificuldade – e pouca vontade – para controlar a sua direção. Preferiu apostar nos partidos conservadores. Mas, tendo estes caído em descrédito assim como os partidos sociais-democratas, não lhe restou outro caminho: botar dinheiro nos partidos fascistas para impedir a ascensão dos partidos comunistas. Uma vez no poder, os fascistas não sabiam o que fazer, não tinham um programa político. Foi aí que a burguesia financeira se apropriou deles. É por isso que a análise dimitroviana do fascismo ajuda pouco ao combate das tendências fascistas atuais: estamos numa época análoga à primeira fase do fascismo que Dimitrov não levou em conta.

4 de Outubro de 2016 Posted by | Brasil, Ideologia, Mundo | , | Comentários Desativados em O que é que Cunha e Doria têm em comum com a abstenção?

Porque a Europa não resolve a crise na Síria?

Não se entende o que se passou ontem em Paris sem falar da guerra civil síria. O clima anti-democrático que se vive no Médio Oriente, e também na Síria, explica alguma coisa. Mas muito pouco, porque a Síria é (ou era) o país mais secular e democrático da região. Quando a Primavera Árabe, em 2011, chegou à Síria, muitos foram surpreendidos e alguns apontaram o dedo à CIA. A evolução da guerra civil síria, em 2012, deixou clara a mão norte-americana no processo. Obama chegou a propor ajuda militar às guerrilhas que combatiam Al Assad; mas o Congresso recusou-se a aprovar o envio de armas a xiitas que haviam pertencido à Al Qaeda. (A Al Qaeda desapareceu com a invasão do Afeganistão; mas as suas unidades subsistem de forma desarticulada.)

A oposição síria não contou com a ajuda direita dos EUA; mas a indirecta, através de Israel e da Arábia Saudita, não faltou. Sabe-se que a denúncia do uso de gás sarin, pelas tropas de Al Assad, em julho de 2012 foi plantada pela Mossad numa estação de rádio alemã. (Eu, fica a nota, estou convencido que foram os rebeldes a disparar o míssil. Por duas razões. Primeiro, porque já o tinham feito em março; a ONU denunciou-o, mas não encontrou eco na imprensa. Depois porque os supostos que levaram os comentadores encomendados pela CNN para atribuir a autoria do atentado ao governo foram todos desmentidos pelas análises balísticas do MIT. O MIT, contudo, chegou apenas à conclusão de que não podia atribuir a autoria a ninguém.)

Os interesses dos EUA na região vão além do controlo da energia. Isso ficou claro com o golpe de Estado na Ucrânia. Putin estava a usar o negócio do gás natural para atrair a Alemanha para o seu lado no xadrez geopolítico. Aproximou-se de Gerhard Schröder e vendeu uma parte da GazProm a investidores alemães para que os interesses russos passassem a coincidir, pelo menos em parte, com os alemães. Além disso, problemas técnicos na Turquia levaram ao abandono do gasoduto franco-americano, deixando a Europa dependente da GazProm para o seu abastecimento em gás natural. Criar problema e até mudar os regimes nesses países de passagem do gás e do petróleo do Médio Oriente para a Europa, então amigos de quem lhe pagava mais (Putin), foi a estratégia dos EUA para evitar o casamento entre Berlim e Moscovo.

Entretanto, uma jogada mais fundamental se preparava em Washington: o desenvolvimento de tecnologias e políticas de subsídios para produzir energia a partir de xistos betuminosos. Com isto, os EUA deixaram de importar petróleo no final de 2014, produzindo uma quebra no preço do barril de crude de 120 dólares (em junho de 2014) para 40 (em março de 2015), deixando a Rússia e, muito em particular, a GazProm, em maus lençois. Os capangas, arregimentados pelos EUA, foram dispensados. Os ucranianos tinha chegado ao poder e Merkel encarregou-se de os proteger. Os sírios ficaram soltos e transformaram-se no ISIS. Ficaram, não obstante, dominando um território com recursos suficientes para se manter sem apoio daqueles que, até há pouco tempo, os financiaram. O resto ainda está na memória e foi muito mais publicitado: destruição, assassinatos, etc. Não apenas entre a Síria e o Iraque, mas também fora. Agora em França.

Daí a dificuldade do Ocidente em atacar o ISIS. Derrotar o ISIS será fácil como apoio do exército sírio… Mas isso seria reforçar a posição geopolítica da Rússia. Outra solução complementar é apoiar o exército curdo. No entanto, isso seria fortalecer a sua luta pela conformação do Curdistão (promessa de Roosevelt, Churchill e Stálin no final da II Guerra Mundial), subtraindo territórios ao Iraque e (eis o problema:) à Turquia. Vale notar que PKK (Partido Comunista Curdo cujo braço armado é o exército curdo), até há poucos anos, era considerado uma organização terrorista pela Casa Branca. Mais: para escândalo de vários países da Coligação contra o Estado Islâmico, a Turquia bombardeou posições do exército curdo, a quem os EUA lançam armas do céu, dizendo que também eles são terroristas.

Ou seja, vencer o antigo capanga dos EUA é fortalecer inimigos geopolíticos do ocidente.

14 de Novembro de 2015 Posted by | Mundo | , , , | 1 Comentário

A culpa da Alemanha na crise

tinha escrito um texto com este título. No entanto, esse texto foi mais teórico. Aí defendi que os três instrumentos de política macro-economica (a saber: o défice do Estado, a taxa de juros de referência e a taxa de câmbio) estão desiquilibrados na zona euro. O primeiro é decidido ao nível nacional; os últimos ao nível da zona euro. Na medida em que estes dois últimos tendem a seguir o interesse da Alemanha e, por isso, a ajustar-se à economia alemã, tendem também a castigar as economias periféricas.

Mas hoje pretendo apenas citar dois textos que li que confirmam isso. O primeiro foi publicado, há dois dias, na Foreign Affairs (revista de política externa da Casa Branca):

As raízes da crise [grega] estão bem longe da Grécia; estão na arquitetura do sistema bancário europeu. (…) O défice grego foi um erro de arredondamento, não razão para pânico. (…) Como Otto Pöhl, ex-diretor do Bundesbank, admite: todo o aparato “foi para proteger os bancos alemães e, especialmente, franceses da inadimplencia“.

E no blog de P. Krugman, no New York Times de 3 de julho, li

Vamos falar da Finlândia (…) Já vai no oitavo ano de uma crise que reduziu o PIB per capita em 10% e não dá sinal de acabar. (…) A Finlândia teve uma crise económica severa no final dos anos 80 – no seu início, foi muito pior que a actual. Mas pôde solucionar rapidamente o problema em grande medida por via de uma acentuada desvalorização da moeda que tornou as exportações mais competitivas. Neste momento, infelizmente, não tem moeda para desvalorizar.

A união monetária é, de facto, uma aberração!!!

9 de Julho de 2015 Posted by | Brasil, Mundo | , , , | 2 comentários

Capitalismo e indústria bélica

Li, finalmente, o texto de Arjun Appadurai sobre a vida social das coisas. De tudo o que li, o que mais me fascinou foi a recuperação de um tese de Werner Sombart, que eu não conhecia. Este sociólogo e economista alemão elaborou uma tese acerca da emergência do capitalismo que se opõe tanto à de Karl Marx quanto à de Marx Weber. Os três olham o capitalismo como um sistema económico assente no crescimento exponencial da mercadoria. Mas enquanto Marx e Weber atribuem isso às vicissitudes da produção – respetivamente, à concorrência e luta de classe e à “ideologia” (ou, mais exatamente, ética) protestante – , Sombart afirma que tal transformação se funda no aparecimento da moda.

Appadurai reconhece que a argumentação de Sombart deixa a desejar; mas indica de seguida que a historiadora Chandra Mukerji refaz, de forma bem fundamentada, as as críticas a Marx e, especialmente, a Weber. Sombart, Appadurai e Mukerji concordam com Marx e Weber que o capitalismo se distingue pelo crescimento geométrico das mercadorias; mas vêm o motor desse dinamismo no consumo. Da seguinte forma:

Em todas as sociedades existem mercadorias restritas à sua elite. Apaddurai dá o exemplo do kula, na Malinésia, estudado por Bronislaw Malinowski. Mas essa restrição é moral ou legal. O advento do capitalismo resulta, por um lado, do afrouxamento das regras que restringem o acesso a mercadorias distintivas e, por outro, da busca de distinção por meio do consumo sumptuoso que apenas as elites se podem dar ao luxo de fazer. É assim que nasce, no ocidente, a moda: a demanda voraz de bens de luxo (têxteis de seda e algodão) que permite, ao Ocidente, desenvolver a tecnologia que associamos à Revolução industrial. E, claro, numa espécie de trickle-down theory modificada, os autores argumentam que foi o desenvolvimento tecnológico associado à produção de bens de luxo que permitiu – uma vez aplicada essa tecnologia aos bens de uso comum – criar a produção em massa e o consumo de massa que define o capitalismo.

Já muito foi dito sobre a oposição entre Weber e Marx – eles se complementam mais do que se opõe. Entre Marx e Sombart (ou, mais exatamente, Appadurai) a relação é do mesmo tipo. Se os quiséssemos opor, Marx sairia ganhando. Nas crises do capitalismo há um desajuste entre a oferta e a demanda porque a primeira ultrapassa a segunda, e não porque lhe fica aquém. Parece portanto indiscutível que o motor do capitalismo está do lado da produção. Mas, ao mesmo tempo, Sombart/Appadurai “perde” o embate com Marx porque “desliga” o consumo da produção – que, para Marx, são inseparáveis. É, por este caminho que Sombart pode ser usado para aprofundar a teoria marxista.

Para Marx, o consumo está duplamente ligado à produção. Em primeiro lugar, a mercadoria se define como tal porque é consumida. Nas palavras de Engels, “o prova da existência do pudim está em que o comemos”. Ou, segundo Marx, o consumo é a última etapa da produção. Em segundo lugar, não há consumo em geral. Falar do consumo das elites é falar do consumo de um conjunto de indivíduos que se encontra em um lugar determinado da divisão social do trabalho, isto é, produção. (Vale recordar que Marx tinha uma noção de economia bem mais ampla que a que hoje conhecemos. Foi nos primeiros anos do século XX que a “economia” foi definida de modo restrito, excluindo dela, por exemplo, a política. Economia, para Marx, é a divisão social do trabalho).

Juntando Marx a Sombart, partimos do princípio que o capitalismo se define pelo crescimento geométrico da produção de mercadorias. Que o motor desse fenómeno são a concorrência e a luta de classes. E que o capitalismo busca, em primeiro lugar produzir bens de luxo; somente de forma secundária produz bens de uso comum.

Isto permite reelaborar um tese de István Mészáros, segundo a qual a proliferação das industria bélica indica uma crise profunda do capitalismo. Não podendo mais expandir a produção de utensílios de uso quotidiano, o capitalismo investiu em armas cuja demanda é, aparentemente infinita. Afinal, um Estado o não compra uma bomba nuclear apenas quando usou as que já tinha como o indivíduo compra uma escova de dentes quando a sua já está gasta. Basta que surja uma bomba nuclear mais moderna para que os governos, em concorrência, sejam obrigados a se atualizar. Visto pelo prisma de Sombart, o movimento é ao contrário. A indústria bélica é o “consumo de luxo” do séc. XX – aquele consumo que dá prestígio e poder a uma elite. E na produção de armas se forja a tecnologia que é, depois, usada na produção de utensílios comuns. A história do séc. XX parece confirmar isto. A tecnologia que hoje utilizamos foi, antes de tudo, usada para fazer armas. Foi para fazer armas que se inventaram os fertilizantes, os motores (de automóveis), a informática, etc. Assim sendo, torna-se difícil aceitar que a importância atual da indústria bélica para o capitalismo seja indicador de um profunda crise do capitalismo; é antes revelador da forma atual do capitalismo.

É certo que existe atualmente uma crise do capitalismo. E que a indústria bélica está de alguma maneira a salvo dessa crise. Mas porque é um “bem de luxo” e não uma “rampa de fuga” para a atual crise do capital.

13 de Agosto de 2013 Posted by | Mundo | , , , | Comentários Desativados em Capitalismo e indústria bélica

Papa Francisco

A visita do Papa ao Brasil foi, no mínimo, mais uma realização de sincretismo. Aliás, a Igreja Católica sempre se deu bem quando fez esta opção. Cresceu na Europa cristianizando os símbolos pagãos; e enraizou-se na América Latina misturando-se com a cultura local. (A esse propósito, eu gosto de dar  como exemplo o altar da Igreja de Santiago Atitán. Ali, a imagética católica se cruza com a maya). Na semana passada, no Rio de Janeiro, o sincretismo foi outro. A visita papal foi um grande negócio, certamente turístico e realizado à medida da especulação imobiliária; que, no entanto, apresentou um Papa que fez, no Vaticano, uma curva à esquerda. A visita à comunidade da Varginha na favela de Manguinhos foi apenas a caridade previsível. Surpreendente foi o discurso em apoio aos protestos dos jovens brasileiros contra o governo. Surpreendente foi a abertura ao diálogo com a Teologia da Libertação (aqui também). Surpreendente foi, por fim, ouvir do papa Francisco “Quem sou eu para julgar os gays?”.

Ao contrário de outros, eu não procuro, nesta contradição, o lado certo. Como marxista, devo saber que a vida é feita de unidade de contrários; que a pureza programática é um mito cartesiano. Esta contradição é o programa que vai marcar o papado de Jorge Mario Bergogli. Um progresso considerável, uma curva à esquerda…  dado o seu ponto de partida: o anticomunismo de Karol Wojtyla, e missão evangelizadora, de uma igreja fechada sobre si mesma, contra o catolicismo não praticante, pai do agnosticismo, de Joseph Ratzinger.

29 de Julho de 2013 Posted by | Ideologia, Mundo | , , | Comentários Desativados em Papa Francisco

A crise (ou como eu a vejo)

Já ando há algum tempo para escrever este texto. Mas não é fácil. São muitos aspetos e bem diversos. Para entender a crise há que discutir dois grandes temas. O que é o capitalismo? E qual é a forma atual do capitalismo? Aqui apenas indicarei os resultados gerais do que eu fui lendo.

Do capitalismo

Os marxistas chamam-me “consumeirista”. Trata-se de uma definição de capitalismo que deve ser atribuída a Rosa do Luxemburgo (e que eu tomo de Harvey) e não a Marx. Uma abordagem que se distingue do keynesianismo não no diagnóstico do problema, mas na solução. Enquanto o keynesianismo acredita que a ação do Estado pode resolver as causas fundamentais da crise; os “consumeiristas” acreditam que só o fim da propriedade privada poderá resolver as crises do capitalismo.

Há dois aspetos que definem o capitalismo. Primeiro, o representante (a moeda) ganhou vida própria e impôs uma dinâmica especial ao representado (à mercadoria).  O padeiro produz não para matar a fome do seu cliente, mas para fazer dinheiro. Isto tem uma vantagem: pudemos ter economias de escala sem que fosse necessário ter mecanismos de coordenação à mesma escala. O “lucro” funciona como um sinal que garante ao vendedor que tudo o que produziu serviu a alguém.

Segundo, o representado (a mercadoria) nem sempre pode acompanhar o passo que lhe é imposto pelo representante (a moeda). As crises devem-se a isso. Prova-se (ver este trabalho de Kalecki) que o salário de um trabalhador é o consumo de outro e, logo, que o lucro de um empresário é o investimento de outro. Portanto, para haver lucro é necessário que haja investimento – por outras palavras, é necessário que a economia cresça. Mas não só. Como o que conta é a taxa de lucro (a massa de lucro dividida pelo investimento acumulado) é necessário que a economia cresça exponencialmente. Repare-se que a variação do PIB (cresceu x%), o mais importante indicador económico, cujo cálculo é sempre relativo ao ano anterior, é a medida de uma progressão exponencial.

Logo, nem sempre é possível encontrar onde investir a uma progressão geométrica ou exponencial. Neste caso, o problema não é só dos investidores, mas também dos empresários já instalados que ficam sem lucro, mas também dos seus trabalhadores que ficam sem emprego.

Da forma do capitalismo

Mas não basta conhecer a essência do capitalismo. É necessário conhecer a sua aparência. E ele, a meu ver, já mudou de aparência três vezes. 1) Começou por ser a  concorrência anárquica entre pequenas empresas descrita por Mendeville e terminou sem dominado por grandes empresas. Para entender a forma atual é necessário ter uma ideia das suas mudanças de forma. E, obviamente, essas mudanças de forma estão ligadas a grandes crises do capitalismo. Nesses momentos, para continuar a crescer, não é necessário apenas encontrar novas oportunidades de investimento. Elas não aparecerão se a própria forma do capitalismo não for profundamente alterada. Penso que hoje estamos num momento assim

2) 1872. Foi a primeira grande mudança de forma do capitalismo. Até aí, o capitalismo estava limitado a umas grandes cidades: Viena, Paris, Liverpool, etc. Por isso, a sua capacidade de crescer se esgotou e criou uma grande crise. A saída dessa crise só foi possível com uma transformação no cerne do próprio capitalismo. A concorrência deixou de dar-se entre empresas, e passou a dar-se entre trusts: conjunto de empresas articuladas por um ou mais bancos. Esta dimensão de negócio permitiu que o investimento se alargasse da Inglaterra para a Índia e Portugal, da França para Espanha e Itália, e da Alemanha para a Rússia.

3) Obviamente, repartido o mundo por estas três potências, veio uma nova crise. A I Guerra Mundial foi o início traumático dessa crise. 1929 o seu auge. E apenas em 1935 se começou a desenhar uma solução. Entramos então na terceira forma que o capitalismo conheceu. Primeiro, o Estado passou a ter um papel de condutor da economia e isso tornou as economias bastante nacionais. Segundo, o Estado cobrava de toda a sociedade, via inflação (a inflação é um imposto que o credor paga ao devedor), para dar aos mais pobre. Isto era: o Estado confiscava a “poupança” dos ricos para garantir o “consumo” dos pobres. O saldo é que os ricos tinha onde investir porque tinham clientes garantidos por esta transferência de riqueza do Estado. Ficou provado na prática que é o consumidor e não o empresário que faz girar a economia e cria emprego.

Mas, em meados da década de 1970, esse modelo se esgotou. E se esgotou porque as desigualdades entre cidadão do mesmo país eram, na época (entretanto reverteu), menos significativas que as desigualdades entre países. E a transferência de riqueza operada pelo Estado (ao oferecer sobretudo serviços gratuitos) deixou de garantir o crescimento económico necessário para manter o bom funcionamento da economia.

4) A partir de 1980, o crescimento económico é garantido de uma forma perversa. O Estado vai reduzindo o financiamento do consumo dos mais pobres e passa a financiar o próprio lucro das empresas. Os novos investimentos, que garantem a viabilidade dos anteriores, fazem-se em áreas atribuídas até então ao Estado: construção de estadas, gestão de hospitais e escolas, gestão da recolha do lixo, etc.. E o Estado garante o lucro destas empresas pelo forma legal de PPPs. Ao mesmo tempo, a especulação bolsista e sobretudo imobiliária injetam dinheiro feito do ar na economia que também garante o lucro das empresas já estabelecidas. Mas esta manobra feita na década de 1980 foi pouco mais que um grande balão de oxigénio. Boa parte do lucro obtido nos últimos 30 anos aparece agora, de novo, sobre a forma de dívida. A nova forma só durou enquanto foi possível criar dívida e jogá-la para a frente.

Conclusão

Com calma. Não quero condenar apenas a perversidade da última fase do capitalismo. Creio que o José Paulo Netto (aqui uma versão mais longa, mas também mais interessante) tem razão quando afirma que o capitalismo é, desde 1970, incapaz de se reinventar a não ser com estes requintes de perversidade. De qualquer modo, o que está em jogo é isto:

a) ou se muda a aparência ou, mais exatamente, a forma do capitalismo;

b) ou se acaba com a necessidade de crescimento exponencial, colocando mecanismos de governança económica (políticos) ao mesmo nível ou superior dos processos económicos. Ou seja, se muda a essência do capitalismo – ainda que não se saiba para onde. Isto era ao que Marx chamava de socialismo.

8 de Julho de 2013 Posted by | Economia, Mundo | | 3 comentários

Maduro vs. Capriles

Há medida que o tempo vai passando e a água vai assentando, o que se vai sabendo acerca das eleições na Venezuela vai dando razão a Maduro. A verdade vai estando do seu lado; a imprensa não. As eleições venezuelanas sempre previram a recontagem. Lendo com atenção esta notícia no El país descobre-se que 54% das urnas foram “recontadas a quente”, ou seja, na noite eleitoral de acordo com o procedimento padrão do sistema. (Por procedimento padrão, mais de 50% das urnas, escolhidas por sorteio, é recontada). Hoje, o CNE aceitou a recontagem das urnas restantes (46%). Para a histórica, e nas palavras da imprensa venezuelana, vai ficar que a oposição exigiu a recontagem de 100% dos votos e que o CNE pró-chavista apenas aceitou recontar menos de metade.

Em jogo estão os votos da classe média – que justifica a passagem de mais de 600 mil votos do chavismo para a oposição entre novembro e abril. Em jogo estão as eleições municipais de julho e as para o congresso de 2014. Um calendário eleitoral que pode sustentar ou aniquilar o chavismo. Portanto, se a reflexão que fiz no meu último texto está correta, então a forma de governar, isto é, o respeito pelas instituições do Estado, será mais importante que o resultado das políticas económicas. Acresce-se que se Maduro tem a televisão do seu lado, Capriles tem os jornais (que tendem a merecer mais a confiança da classe média). E se Maduro tem as instituições do Estado do seu lado; Capriles tem o talento político.

O impasse na decisão sobre a recontagem dos voto já favoreceu Capriles. Será Maduro capaz de capitalizar a seu favor o facto da montanha ir parir um rato? (Sendo um dos sistemas de votação mais seguros do mundo, duvido que a recontagem não confirme a vitória de Maduro). Além disso, a Unasur avançou com uma medida que pode favorecer Maduro: a “auditoria” da violência pode desgastar a imagem de Capriles. Afinal, por muito que se tenha demarcado dos atos violentos, a violencia foi perpetrada pela oposição

Mas quando se nota que a decisão de recontar todos os votos também chegou apenas depois da reunião da Unasur, fica claro que o melhor aliado de Maduro é o bom conselho dos seus companheiros internacionais.

20 de Abril de 2013 Posted by | Mundo, Partidos | , , , | Comentários Desativados em Maduro vs. Capriles