Fala Ferreira

Assim me saúdam os amigos de Guatemala.

O PCP não é, não pode ser, nem será o Podemos

O PCP não é o Podemos

Existe uma prática que se está a tornar corrente, entre os críticos pela esquerda à direção atual do PCP, de dirigir a potências aliados críticas que, na verdade, são devidas ao Partido e à sua direção. Esta foi a verdadeira razão das críticas que eu fiz aqui ao BE. Esta estratégia, assumida para preservar o partido de críticas públicas num momento em que os mecanismos internos não dão mais conta das divergencias existentes, é errada. Não apenas porque é injusta. Mas sobretudo porque se fertiliza uma já existente concepção equivocada da política de alianças. Pois assim nos habituamos a fazer aos potenciais aliados as mesmas exigências que fazemos a nós próprios. E, então, das duas uma: ou somos “revolucionários” e só nos aliamos com revolucionários – o que é sectarismo e prova que não somos revolucionários; ou, para conseguir aliados e fazer alguma coisa, deixamos de ser revolucionários (uma espécie de descida à consciência das massas ou, mais exatamente, dos aliados).

As alianças têm de ser assumidas em função de tarefas práticas. Mas, por sua vez, é necessário que essas tarefas sejam teoricamente definidas. A este respeito vale ler o programa mínimo que escrevi aqui, onde, da “análise concreta da situação concreta”, retiro a necessidade de criar uma organização de jovens desempregados em torno do lema «Desempregados não pagam dívidas!». Uma vanguarda revolucionária deve estar disposta a colaborar com deus e o diabo uma vez definida esta tarefa; ainda que não confie nos seus aliados, tem confiança na tarefa. Se ela foi bem definida, trará os aliados para o campo revolucionário ou os fará ir embora por seu próprio pé.

O PCP não pode ser o Podemos

Pouca gente tem analisado o que levou o Syriza e o Podemos a tirarem proveito do colapso do PSOK e do PSOE. Apesar das diferenças programáticas, existe uma coisa em comum com o UKIP e a Front National: a primazia do carisma dos candidatos sobre o programa do partido. Não posso aqui entrar por todas as dimensões da análise necessária desta questão – mas já o fiz aqui. Apenas afirmar que a disputa eleitoral nos países ditos desenvolvidos têm levado a uma política fetiche, na qual deixa de estar em disputa destinos alternativos para o país. O que passa a estar em disputa é quem é o melhor gestor do status quo, quer dizer, do capitalismo. Em poucas palavras, a escolha de pessoas deixa de ser em função dos seus programas e passa ser em função das suas “qualidades pessoais” embelezadas pelo marketing eleitoral.

O efeito da crise económica sobre a política é preverso: ao invés de estilhaçar esta política fetiche, aprofunda-a. Os eleitores, cansados desta forma de fazer política, mas desabituados do debate de ideias, exigem não alternativas programáticas, mas “novos” políticos ou novos gestores. Ou seja, aprofunda-se a importância das qualidades do “político” – que, curiosamente, é considerado tanto melhor quanto menos experiência tenha da vida política – em detrimento dos escolhos que, uma vez no governo, ele terá de fazer.

O Podemos e o Syriza são movimentos novos, como o BE foi há dez anos, capazes de oferecer estes “novos” políticos aparentemente “limpos” da corrupção da política. Mas os partidos de extrema direita são ainda mais competentes para tirar proveito desta forma de fazer política. Pois os partidos de esquerda, apesar de tudo (apesar do pragmatismo de Pablo Iglesias), não podem dispensar totalmente a ideologia. Afinal, só a ideologia dos dominantes não precisa ser defendia. Por essa razão, Marinho Pinto foi, nas eleições europeias, mais competente que o BE para tirar proveito desta política fetiche.

Portanto, com mais razão, o PCP – um partido ideológico por excelência (felizmente!) – não poderá tirar proveito de uma “PASOKização” do Partido Socialista.

O PCP não será o Podemos

Tudo isto vem a propósito de certas ações do PCP me levam a crer que o Partido quer ser o Podemos lusitano. Isto parece-me claro quando em 2012, enquanto na Grécia o KKE se afastava do Syriza, em Portugal o PCP recebia o arquinimigo do KKE no movimento comunista internacional: o PCE. Claramente, como antes ao se reunir com o BE, o PCP dava um sinal claro de que se tivesse a oportunidade de formar governo com o BE, assim como o KKE teve oportunidade com o Syriza, não a desperdiçava. Mais, recentemente, o Que Se Lixe a Troika, estrutura que o PCP e o BE coordenam em conjunto, organizou a vinda do Podemos a Lisboa, o que parece indicar que os dois partidos creem que colaborando podem conseguir, em Portugal, o que o Podemos conseguiu em Espanha.

Sem dúvida necessitamos de inovar na forma de organizar a esquerda e os trabalhadores. O atraso do fator subjetivo frente a uma enorme crise do capitalismo só pode significar erros acumulados dos partidos de esquerda, sem que ninguém que se diga de esquerda possa, como Pilatos, lavar daí as mãos. No entanto, vir a ser o Podemos não é o caminho: pelo menos para o PCP.

Por isso volto a insistir no meu Programa mínimo, isto é, na necessidade de criar – sem dúvida, com a ajuda de todos os pretendentes a Podemos luso – uma organização de jovens desempregados. Pois…

DESEMPREGADOS NÃO PAGAM DÍVIDAS!!!

23 de Novembro de 2014 Posted by | Partidos, Portugal, Sociedade portuguesa | , , | Comentários Desativados em O PCP não é, não pode ser, nem será o Podemos

O manifesto e a esquerda

(…) toda a nova classe que toma o lugar de outra que dominava anteriormente é obrigada, para atingir os seus fins, a apresentar o seu interesse como interesse comum de todos os membros da sociedade, quer dizer, expresso de forma ideal

K. Marx e F. Engels, A ideologia alemã.

Demorei alguns dias a escrever a minha posição sobre o Manifesto dos 70 por duas razões. A primeira é porque creio ser mais importante combater o modo como foi recebido por pessoas ideologicamente alinhadas com este governo, em particular José Gomes Ferreira. Uma tomada de posição despolitizante da política – “Se é preciso fazer-se, faz-se. Discretamente, nos sóbrios gabinetes da alta finança internacional.” (aqui) – , cuja consequência subtrair a política tudo exceto a politiquice; deixá-la ao jeito da crítica fascista e do crescimento dos partidos fascistas. Por isso escrevi antes estes dois textos (aqui e aqui) a defender um manifesto que eu próprio jamais subscreveria.

A grande dificuldade de tomar uma posição sobre a questão, ainda que seja a de não pagar, é que toda a discussão está colocada do ponto de vista da nação. Ou, como mostra a epígrafe deste texto, do ponto de vista da classe dominante. Mesmo a posição aqui defendida (reproduzida aqui) pelo João Vilela, sendo a única que eu poderia subscrever, pode apenas escapar desta crítica por um caminho que não o isenta de outras. Porque ela contém a única via possível para escapar do ponto de vista burguês, mas tomado de um contexto histórico particular que não é o atual, mas sim o da Rússia às portas da Revolução socialista.

Basta observar as posições assumidas pela esquerda para confirmar que ela se divide em dois extremos. Num extremo, a pergunta é ‘o que o Estado deve fazer tendo em contra a correlação de forças existente?’ Fica por acrescentar: e tendo em conta o facto de que não vislumbramos o fim domínio da burguesia. (Esta tem sido a posição do PCP que tem se antecipado sempre à própria burguesia a fim de disputar o apoio popular. Há certa lógica nisto. Espera-se que estas antecipações desloquem o eleitorado para a CDU e, à medida que o eleitorado se desloque para lá, a correlação de forças se altera de modo a que as medidas sejam cada vez menos capitalistas. É uma estratégia tão boa como, por falta de dinheiro e querendo muito conhecer Praga, sair de Lisboa a pé). No outro extremo a questão é colocada em outros termos. A despeito da correlação de forças, o que o Estado deveria fazer? Melhor seria perguntar: o que o Estado nunca irá fazer? É isto que está por detrás da tensão entre a “reestruturação honrada” e o “não pagamos”.

A questão correta é: o que devemos fazer nesta correlação de forças? E de que modo devemos enquadrar-nos neste debate por forma a avançar com essas tarefas? No fundo, estamos frente a três níveis de reflexão: qual a correlação de forças?; quais as tarefas da esquerda nessa correlação de forças?; e como tomar partido nos debates conjunturais para cumprir com essas tarefas? O texto do João Vilela tem a virtude de não oferecer uma resposta à terceira questão sem colocar a segunda; o defeito é que responde à segunda a partir dos textos de Lénin e não de uma resposta marxista-leninista à primeira questão.

A estratégia leninista só foi verdadeiramente adequada de 1914 a 1921; isto e, do início da I Guerra Mundial à derrota, pelas mãos do fascismo, do soviete de Budapeste. O início da guerra mostra, a Lénin, que o capitalismo está em sua fase terminal. No entanto, anos de “exportação” das crises do centro para a periferia, da Alemanha para a Rússia, de França para o Norte de África e de Inglaterra para a Índia, os operários do centro (da Alemanha, da França e de Inglaterra) “amoleceram” – tornaram-se oportunistas. E, apesar disso, ainda eram a fonte de inspiração dos operários da periferia. De modo que a tarefa da vanguarda proletária era combater o “imperialismo”, ou seja, por um lado, acabar com a influência do “oportunismo” sobre os operários da “periferia”; por outro, impedir a continuada exportação de crises.

Instaurar uma “ditadura do proletariado” num país semi-feudal como a Rússia só aparentemente era um equívoco. Pese a esse Estado proletário enfrentar irremediavelmente tarefas burguesas e entrar em contradição com elas, ele era condição necessária para obrigar a burguesia alemã fazer pesar as crises sobre o proletariado alemão ao invés de exportá-las para a Rússia e, consequentemente, dispor os operários alemães a fazer uma Revolução no seu país. Uma vez que o centro do capitalismo se tivesse tornado socialista, ele poderia apoiar a periferia onde Estados proletários se debateriam ainda com tarefas burguesas e com as contradições decorrentes do facto dessas tarefas serem lideradas por proletários. No entanto, o surgimento do fascismo impediu a expansão do socialismo da Rússia para o centro da Europa.

O que, após a morte de Lénin, interrompeu essa análise concreta da realidade concreta? Por um lado, o Partido Social Democrata alemão viu Lénin como um mestre da tática, mas jamais um teórico. Para o Partido Comunista da União Soviética ele era a cereja em cima do bolo da filosofia marxista, doravante marxismo-leninismo. (Se há uma razão porque tenho problemas com o debate do hífen é que discordo das duas posições). Por outro lado, o debate entre Trotsky e Stálin sempre foi por saber quem era o mais fiel leninista. Portanto, ninguém estava disposto a ler Lénin como Lénin leu Marx: alguém que deixou as “pedras angulares” de certa forma de pensar, mas uma “teoria inacabada” (daqui). Aliás, imediatamente, o leninismo só encontrou como crítico o próprio Lénin. O esquerdismo…, escrito em 1920, é uma autêntica auto-crítica. Não sendo um “porra! enganei-me” é, sem duvida, um “devagar com o andor que o santo é de barro”.

Então, qual é a correlação de forças atual? Ou melhor, qual é a forma atual do capitalismo? Não posso eu refazer uma análise que mobilizou toda a segunda internacional (em particular, Hilferding e Rosa de Luxemburgo) e da qual Lénin tirou as consequências. Posso insistir em algumas ideias que venho repetindo neste blog.

Primeiro: A burguesia está divida em duas frações: a banca e aliados contra o resto; ou, nas palavras destes últimos, o setor dos bens não-transacionáveis (BnTs) vs. o setor dos bens transacionáveis (BTs). Os primeiros, dada a força da banca, estão no poder. E este manifesto é uma pressão dos últimos para acelerar as negociações em curso com a banca e a troika. Como eu disse aqui, desde março de 2013 se nota que os dois setores estão de acordo na estratégia. Divergem porque são aqueles que estão longe do governo estão descontentes com a velocidade a que se negocia com a Europa.

Dada a correlação de forças, a esquerda tem de “surfar” nas contradição de classe. Não se trata de dar razão a uma das duas frações, mas apoiar-se numa e ir além dela. Sim! É preciso reestruturar a dívida do Estado, com diz o setor dos BTs; mas não de forma “honrada”, isto é, de acordo com as condições impostas pela banca (BnTs). Honrada perante aqueles que especulam com a dívida da mesma maneira que há dez anos especularam com as  casas? Honrada perante aqueles que provocaram a dívida e agora ganham ainda mais dinheiro à custa dele? Honrada perante ladrões?? A crítica burguesa da burguesia nunca porá em causa propriedade privada. Por isso ficará sempre longe do necessário. A ela acrescentaremos: se a reestruturação da dívida provocar a falência dos bancos portugueses não vamos chorar perante o desastre desses agiotas. Sabemos que há alternativas.

Segundo: A classe trabalhadora é atravessada por duas contradições internas, como afirmei aqui. A primeira opõe trabalhadores sindicalizados a não sindicalizados; e ela se reforça porque entre os primeiros predominam os funcionários públicos e entre os segundos os trabalhadores do setor privado. Mais, os segundos olham-se como credores de um Estado devedor do qual os primeiros fazem parte. De modo que, posto da forma como está posto, o debate da renegociação da dívida empurrará sempre esta fração da classe operária para o conservadorismo.

A segunda contradição traz a solução. Ela é entre os que estão agora a ingressar no mercado de trabalho (a geração mais bem qualificada da história de Portugal) e os que já lá estão. Mas, ao invés de separar a classe, ela a une. Pois os problemas dos jovens são os problemas dos filhos de  todos os trabalhadores. Daí que a esquerda seja obrigada a participar no debate focando sempre os problemas dos jovens. E, neste caso, deve ser muito claro: a renegociação da dívida deve visar a viabilização de um programa de reindustrialização e criação de emprego em Portugal, e não apenas torná-la pagável (como se diz no manifesto). O critério com o qual se estabelece o valor da renegociação deve ser pensado a partir de cada jovem desempregado e não a partir do bolso de Fernando Ulrich.

Terceiro: A esquerda não pode dar tréguas a um sentimento anti-Estado, anti-partidos, anti-política e anti-espaço público, que se gera a partir da primeira contradição interna da classe operária e que a burguesia não para de usar em seu proveito. Esta ideia de que todos os políticos são corruptos e de que o Estado é mau por natureza sempre foi boa para gerar fascismos. E os porta-vozes do governo, em particular José Gomes Ferreira, saíram logo a rua para reduzir o manifesto a “politiquice” e a apelar ao espírito proto-fascista para lhe calar a voz. Foi contra isso que, sem concordar com o manifesto, aqui e aqui pareci subscrevê-lo.

17 de Março de 2014 Posted by | Economia, Ideologia, Sociedade portuguesa | , , | 3 comentários

Os 70 e a democracia

Quando ouvi falar do manifesto dos 70 nem me apercebi do que se trataria. O Renato Teixeira enviou, para mim, uma crítica que fez aos signatários. Pensei: mais um manifesto do Daniel Oliveira que o Renato adora criticar! Mas não. Os subscritores deste manifesto vão da esquerda à direita, de Carvalho da Silva e Francisco Louçã a Manuela Ferreira Leite e Bagão Felix, de políticos a empresários como Antonio Saraiva e João Vieira Lopes.

Curiosamente, parece ter havido um pequeno estrondo. De tal modo que ontem toda a gente fala nisso; a começar pelo Primeiro-Ministro. E o que diz não é novidade; estava implícito no prefácio do livro de Cavaco Silva publicado segunda-feira:

Pressupondo um crescimento anual do produto nominal de 4 por cento e uma taxa de juro implícita da dívida pública de 4 por cento, para atingir, em 2035, o valor de referência de 60 por cento para o rácio da dívida, seria necessário que o Orçamento registasse, em média, um excedente primário anual de cerca de 3 por cento do PIB. Em 2014, prevê-se que o excedente primário atinja 0,3 por cento do PIB (fonte; ver também aqui).

Daí que não seja de surpreender que pessoas próximas de Cavaco Silva, incluindo Manuela Ferreira Leite, apareçam como subscritoras do manifesto.

O que me espanta em tudo isto é que o modo como o manifesto foi recebido é um verdadeiro atentado à democracia. O argumento de que o manifesto é dispensável porque 1) diz o óbvio na 2) na pior altura, afirmado aqui por José Gomes Ferreira, é verdadeiramente anti-democrático. Em nome dos “mercados” aconselha-se os portugueses a “emigrarem para o interior”, como os alemães faziam no tempo do nazismo. (“Emigrar para o interior” foi a expressão usada por alguns alemães depois de 1945 para afirmar que o seu empenho “exterior”com as maiores atrocidades do nazismo coabitava, e encobria, um profundo desagrado “interior” com as atividades que eles próprios executavam. E assim até líderes judaicos colaboraram com esse assassinato em escala industrial. [Antes de conhecer a expressão, fiz este texto sobre os efeitos corrosivos dessa atitude cínica sobre a democracia]).

Certamente, o que está em jogo não é um assassinato em massa, mas é suficientemente grave para que só possa ser posto em marcha com recursos a traços de uma “cultura totalitarista” (no sentido em que foi analisado por Hannah Arendt). Existe uma máquina – o Estado – que funciona em nome de um valor mais alto – dar segurança aos mercados – e que obriga tudo e todos a guardar a sua opinião para si. Quando se recomenda às pessoas que guardem para si, que coloquem fora do debate público, o óbvio sobre as decisões do governo, é porque está em curso o divórcio entre capitalismo e democracia!

Adendo: Escrevi este post na madrugada. Há medida que o dia decorre, multiplicam-se aqueles que falam da falta de oportunidade do manifesto. Teodora Cardoso; os partidos do governo; o próprio Primeiro-ministro e, indiretamente, o Presidente da República. O que quer dizer que a minha insinuação da proximidade de Cavaco aos “manifestantes” estava equivocada.

Adendo 2: Agora, à noite, José Gomes Ferreira repete o seu argumento em uma carta à geração errada. E termina com um sintomático: “Deixem os mais novos trabalhar”.

12 de Março de 2014 Posted by | Ideologia, Sociedade portuguesa | , , , | 2 comentários

Manifestações à portuguesa

Ando distraído dos acontecimentos políticos em Portugal. Por isso não acompanhei a manifestação de polícias de ontem. Nem os antecedentes; nem o ato. Vejo hoje pelas notícias: 15 mil polícias à porta do Parlamento; a comunicação social descredibilizando a manifestação fazendo os polícias passar por bêbados; grande tensão e temor que os polícias invadissem o Parlamento (aqui também); infiltrações fascistas entre manifestantes; etc.

Não vou aqui repetir o que tantas vezes já afirmei neste blog: que a classe trabalhadora portuguesa se divide, atualmente, em três frações. Fica apenas o resumo. Primeiro temos a base dos sindicatos. É uma fração capaz de mobilizar-se a si mesma e pela esquerda, mas com dificuldade em trazer atrás de si toda a classe. Depois estão os jovens desempregados que, apesar de tenderem tanto para o discurso conservador como para a esquerda, foi sempre esta que levou a melhor até agora. Eles demonstraram-se sempre capazes de trazer atrás de si toda a classe mas nunca mobilizar-se a si mesmos. Foram sempre mobilizados por disputas no seio da burguesia. E, finalmente, está a grande massa apática e tendencialmente conservadora. Para quem quiser mais detalhes, expus esse argumento aqui.

Mas, como também venho analisando neste blog, as divisões intra-burguesas que mantiveram os jovens desempregados ativos politicamente entre setembro de 2012 e março de 2013, foram temporariamente resolvidas. Portanto, a base dos sindicatos se tornou a única fração de classe ativa de há um ano para cá. Uma fração que, como eu disse acima, é incapaz de arrastar toda a classe trabalhadora e criar realmente problemas ao governo.

Houve uma exceção: a manifestação sobre a ponte 25 de Abril. A CGTP foi capaz de criar uma instabilidade política que talvez (sublinho: talvez) tivesse ativado os jovens desempregados e, com eles, mobilizado toda a classe. Pela primeira vez houve uma oportunidade de colocar toda a classe em luta sem necessitar da “ajuda” da burguesia. Mas essa oportunidade só existiu porque o sindicato soube criativamente ultrapassar o esperado; surpreender! Infelizmente, na hora agá acovardou-se e tornou inútil a convocatória do QSLT para uma manifestação no sábado seguinte.

É tendo em mente este contexto que eu olho a manifestação de ontem. Elas só são produtivas se criarem uma incerteza capaz de ativar as manifestações de jovens desempregados. Só são úteis se forem criativas e forem até ao fim. Infelizmente, ontem, até porque se dispuseram a uma aposta muito alta (invadir ou não o Parlamento), os líderes da manifestação acovardaram-se do mesmo modo que a CGTP há cinco meses atrás.

Por este caminho “celebraremos” a queda deste governo apenas nas eleições de 2015!!!

7 de Março de 2014 Posted by | Portugal, Sociedade portuguesa | , , | Comentários Desativados em Manifestações à portuguesa

A “Aula Magna” e a conjuntura

Há dias escrevi que existe na esquerda um certo descuido com a conjuntura. Que esse descuido se nota na ausência de qualquer análise que desça do nível das classes às frações de classe. Que tinha como consequência o facto de que o materialismo dialético só servir para justificar a prática política da esquerda, e não para “desenhá-la”. E que a causa seria essa mesma: a indisponibilidade da esquerda em debater teoricamente a sua ação!

Mas, com honestidade, a análise marxista de conjuntura enfrenta duas grandes dificuldades. 1) Nem sempre temos informações suficientes para fazer a ponte entre uma decisão concreta – conjuntural – e a sua base material. 2) Em segundo lugar, é necessário levar a dialética a sério. O sentido de uma ação depende sempre do seu contexto. Um vestido vermelho numa igreja não significa a mesma coisa conforme esteja a ocorrer um casamento ou um funeral. Afinal, a política tende a ser adversa a estas mudanças de sentido que a dialética analisa: provoca-as mas não as assume.

Isto pode ser aplicado ao que aconteceu na Aula Magna. Em particular para dar conta de dois pontos de vista, à esquerda, sobre o acontecimento. Aqueles que vêm nos acontecimentos uma encenação para ajudar o PS a fingir que é de esquerda, e criticam os partidos à esquerda do PS por terem participado nessa encenação. E os que dizem que não há que temer alianças, se se quer deitar este governo abaixo.

1) O PS, como já afirmei aqui, é um partido contraditório. Oriundo da classe média (da “aristocracia operária”, para usar um termo leninista), buscou a ajuda da banca – e ajudar a banca – para combater a influência do PCP na sociedade portuguesa. Hoje tem de responder a esses dois interesses díspares e por isso se tornou um partido, como dizem, ‘de esquerda na oposição, de centro em eleições e de direita no governo’. Aliás, isto também mostra o quanto a classe média perde todas as batalhas internas no PS quando as decisões do PS são para valer.

2) Por outro lado, é claro – e se houverem dúvidas basta recordar o acordo proposto por Cavaco Silva em julho – interessa à burguesia levar o governo de Passos Coelho até ao término da negociação do segundo resgate. Já se sabe que o PS não vai assinar. Mas adivinha-se que irá executá-lo em nome dos compromissos assumidos pelo país. É esse o jogo: para que Seguro possa colocar as culpas das suas opções em Passos Coelho, assim como este colocou em Sócrates.

Daí que uma aliança com o PS para deitar este governo abaixo é um pau de dois bicos. Será uma vitória da esquerda se o governo cair antes de junho e Seguro for obrigado a assumir inteira responsabilidade pelo seu governo. Será uma derrota ser a esquerda celebrar, com o PS, depois de junho, a demissão de Passos. Nesse caso, a esquerda terá realmente dado a mão há burguesia. Terá travestido de esquerda uma parte da estratégia política da burguesia. Como um vestido vermelho altera o seu sentido de acordo com o contexto, também o que se passou na Aula Magna. Mas contexto do encontro do passado dia 22 está em aberto até junho de 2014, assim como o seu significado!

Nota final: Raquel Varela não tem razão quando afirma que os trabalhadores necessitam de um programa próprio. Na atual correlação de forças, cujas causas já expus aqui (vale a pena ler também a minha resposta ao Francisco), as organizações de trabalhadores já fariam muito se soubessem aproveitar-se das contradições do programa político burguês para crescer.

Vivemos num tempo mais para Mussolinis do que para Lénines.

28 de Novembro de 2013 Posted by | Partidos, Sociedade portuguesa | , , | 10 comentários

Actualização da conjuntura (as “massas”)

A minha última sistematização da conjuntura política em Portugal partilhei-a aqui há mais de um ano. Lá afirmei que, dada a complexidade do capitalismo atual, a análise de classes não é mais suficiente; é preciso passar à análise de frações de classe. E que a classe burguesa se divide entre banca e amigos, de um lado, e o resto no outro, sob liderança dos supermercados. Duas atualizações da minha leitura da realidade foram feitas aqui e aqui. A primeira é sobre as relações entre frações e o papel do PS; a segunda é sobre a lógica do governo de Passos Coelho. O resultado é que a elite está literalmente acantonada, coesa a despeito de profundas divergências internas.

Já a classe trabalhadora, as “massas”, se divide em duas frações principais: os funcionários públicos e os trabalhadores do setor privado. A estas junta-se uma terceira fração constituída pelos jovens com curso universitário e no desemprego, ou em empregos precários. Esta questão tem de ser bem esclarecida, de modo a não “substancializar” as frações de classe. As classes e frações de classe não têm uma existência concreta a não ser enquanto resultado da polarização da sociedade em torno das suas contradições. Assim o que temos são duas contradições que polarizam os trabalhadores. Em primeiro lugar, o grau desigual de sindicalização, que é maior na função pública onde houve menos ataques dos patrões aos sindicatos. Como se vê nas greves gerais, é sobretudo entre motoristas de transportes públicos, trabalhadores da recolha do lixo e professores que os sindicatos encontram apoios. Aos mesmo tempo, os trabalhadores do setor privado olham para os ordenado dos funcionários públicos como o olham para o recibo de IRS e, por isso, desdenham as greves que eles fazem e “seus” sindicatos. Daí a primeira oposição!

Há depois uma segunda oposição sobretudo geracional. De um lado, os pais que já conseguiram emprego; do outro, os filhos que não o encontram. A elite bem tem tentado voltar uns contra os outros. Duas razões fazem-no fracassar: em primeiro lugar, porque os “pais” se associam à luta dos filhos, e a manifestação de 12 de março de 2011 foi uma das mais plurais dos últimos 30 anos. Em segundo lugar, porque os porta-vozes destes jovens conseguiram, talvez por causa disso, afastar esse discurso. Assim, a elite não tem conseguido explorar esta oposição, apesar de explorar bem demais a primeira – ao ponto de irritar até Pacheco Pereira.

Este “preâmbulo” vem a propósito da minha irritação com a esquerda portuguesa e do debate em curso à esquerda. A CGTP deve aumentar a intensidade da luta (“radicalizar”, se quiserem) em função das medidas radicais do atual governo? Ou deve ir no passo permitido pelas contradições internas da classe operária? (Aliás, este texto é uma resposta a este que exige a primeira opção). Esta é uma opção entre o impossível e o insuficiente! Uns recusam-se, disfarçadamente, de entrar na luta; os outros entram nela a espera da derrota – embora não o admitam. A análise de frações de classe é a única via que permite sair deste impasse.

Deste ponto de vista, temos

a) uma fração de classe capaz de se mobilizar endogenamente (a partir das suas organizações – a CGTP), mas incapaz de arrastar consigo toda a classe trabalhadora: os funcionários públicos;

b) uma fração de classe que não se mobiliza sozinha, mas depende dos conflitos internos da classe burguesa para entrar em atividade. É precisamente ela que consegue trazer todas as demais frações por arrasto; e

c) uma fração de classe desorganizada, que nunca se mobilizará a si mesma pese a ser determinante: é constituída pela maioria dos trabalhadores.

As greves gerais de março e novembro de 2012 provam isto. Em março a classe burguesa estava coesa e os “indignados” (chamemos-lhe assim), por isso mesmo, inativos. Logo, os funcionários públicos foram para a greve isolados, isolando-se! O resultado foi um fracasso; esse isolamento desmobilizou até parte dos funcionários públicos. A greve geral de novembro veio a reboque de 15S; e este foi ativado pela crise da TSU. Por isso conseguiu penetrar no setor privado de forma poucas vezes vista nos últimos 30 anos em Portugal.

Se eu tiver razão, a classe trabalhadora está praticamente condenada à derrota. (Considero que o que está em jogo é derrubar o governo… antes de ele negociar o segundo memorando. Se Passos conseguir deixar um memorando assinado ao PS como herança, um memorando a quem botar as culpas para governar à direita, esta política terá mais quatro anos garantidos de vida). As iniciativas de luta encabeçadas pelos sindicatos e funcionários públicos tendem a isolar-se e a ter pequenos resultados. (O impacto político da greve da função pública da semana passada prova-o). E os jovens tampouco conseguirão iniciar um protesto bem sucedido com esta estabilidade política.

A única janela de oportunidade que vejo vem da minha análise do caso da manifestação na ponte 25 de Abril. Na discussão sobre a legalidade da manifestação, a CGTP conseguiu introduzir instabilidade numa elite apática com medo da instabilidade. E isto apesar da CGTP continuar a contar apenas com a sua base, com três setores: transportes públicos, recolha do lixo e professores. Talvez a CGTP, se tivesse levado a manifestação até ao fim, tivesse produzido a instabilidade política imprescindível ao sucesso das manifestações convocadas (não organizadas) pelo Que Se Lixe a Troika. Talvez então o QSLT pudesse trazer toda a classe trabalhadora para a rua. E talvez assim se tivesse dado mais um rombo a um governo que parece (mas não está) coeso desde a saída de Gaspar.

Porque é que a CGTP quase conseguiu em outubro passado o que raramente consegue? Em parte, pelo simbolismo da manifestação: foi uma manifestação na ponte que ditou a queda do governo de Cavaco Silva. Em parte pela novidade! Parece que só a novidade faz tem audiência televisiva. Em parte pela legalidade discutível da manifestação… Isso fez correr rios de tinta nos jornais e preocupou o governo.

Talvez assim se perceba porque discordo deste post do Francisco e da radicalização setorial da luta. Ela tenderá sempre a separar esses setores do resto da sociedade e a assegurar a vitória do governo. A greve dos estivadores, que ninguém se lembra mais, é um exemplo disso.

18 de Novembro de 2013 Posted by | Portugal, Sociedade portuguesa | , , , , | 2 comentários

A greve geral devia ter sido marcada hoje

Gostaria de ter ouvido, hoje, da boca de Arménio Carlos não apenas que a CGTP  anunciará, em breve, uma greve geral, senão a data de realização dessa greve. Até porque essa ação de luta deviria coincidir com a entrega do Orçamento de Estado na Assembleia da República, portanto, na semana de 15 a 20 de outubro – ou seja, daqui a três semanas! Por um lado, a entrega do OE será, seguramente, o momento de maior tensão intra-elitária. (A este respeito pode ver-se a troca de galhardetes de hoje entre António Borges e António Saraiva). Por outro lado, o Terreiro do Paço “cheio que nem um ovo” avalizaria a marcação dessa greve geral.

1. Para entender de forma acutilante o que está em jogo, é preciso corrigir a estratégia da central sindical. É necessário abandonar o corte nacionalista por detrás de “Renegociar a dívida! Rejeitar a troika!” e colocar a questão em termos de classe. (Se, pela necessidade de criar consensos alargados, a CGTP é obrigada a manter o corte nacionalista, isto podia ser facilmente resolvido se o PCP adotasse o corte de classe. Aliás, não se compreende porque as duas organizações têm a mesma estratégia sendo uma, segundo os próprios comunistas, unitária e a outra não).

É um facto que a classe trabalhadora e os partidos de esquerda não podem, no próximo ano, almejar chegar a governo. Portanto, a sua estratégia deve passar por destruir os instrumentos de dominação ideológica burguesa. Se a burguesia muda governos e queima cartuchos (queimou Sócrates, está a queimar Passos e vai queimar Seguro) para manter o seu programa, a tarefa dos partidos dos trabalhadores é, por agora, encurtar a vida desses cartuchos. Portanto, a tarefa imediata é derrubar o governo de Passos Coelho mesmo que, inevitavelmente, Seguro ocupará o seu lugar com o mesmo programa. E, na medida em que o PS tiver se envolvido na oposição ao atual governo, o seu reinado ainda será mais curso. As palavras de José Seguro hoje servirão contra ele amanhã.

2. Postas as coisas assim, é muito importante envolver as bases do PS nesta luta. E o PS está literalmente à espera para ver (já comentei isso aqui). A UGT recuou na proposta de greve geral – questão que a própria UGT levantou no passado dia 12 e mantinha há 4 dias atrás. Então, o adiamento da convocação da greve geral para 3 de outubro dá, à CGTP, quatro dias para negociar com a UGT esta ação de luta. Obviamente, nenhuma agulha se acerta em tão pouco tempo. Ainda que fosse importante o contrário, pois o antagonismo entre as duas centrais sindicais deve aprofundar a tensão latente entre os trabalhadores, é muito provável que a CGTP tenha de fazer a greve geral sozinha. Por outras palavras, parece inútil esperar pelos socialistas.

3. A CGTP pode, pelo contrário, ter adiado a convocação por outras razões. Seja para seguir a burocracia da organização. A decisão de convocar uma greve geral tem de ser decidida em Conselho Nacional. Seja para impor, democraticamente, a realização de uma greve geral à grande franja de simpatizantes do PS que existe na CGTP. Num e noutro caso, a reunião extraordinária do CN foi marcada já para a próxima semana. De qualquer modo, não haveria diferenças formais entre o que Arménio Carlos disse hoje e ter dito, por exemplo, “A direção da CGTP proporá ao seu Conselho Nacional a realização de uma greve geral no próximo dia 17 de Outubro”. Se o tivesse dito, a greve poderia começar a ser preparada segunda-feira com todo o afinco. Mas não disse.

4. Pode, em alternativa, pretender convocar uma greve, como sempre, em torno do dia 20 de novembro. Então, nesse caso, há tempo. Mas também, nesse caso, a CGTP cumprirá, burocraticamente, a sua greve geral anual, completamente desencaixada de uma leitura fina do evoluir das condições subjetivas da luta dos trabalhadores. Se for assim estamos diante de um erro crasso.

30 de Setembro de 2012 Posted by | Portugal, Sociedade portuguesa | , , , , | 5 comentários

Sobre o congresso das “esquerdas”

Não posso comentar o que penso acerca da entrevista que Carvalho da Silva deu na terceira-feira passada ao Sol sem pensá-la num quadro mais amplo: o mapa ou, mais exactamente, o campo das esquerdas. Ela enfrenta dois problemas genéricos:

1. Primeiro problema. A primeira tarefa da esquerda é, obviamente, o combate a uma política capitalista que tudo faz para aumentar o lucro à custa do trabalho. Mais complexo do que isto, trata-se de encontrar o justo equilíbrio entre o necessário e a disponibilidade moral das massas. Neste caso a referência tem sido a CGTP. Protagonista da maior parte das iniciativas de massas, parece-me ter sabido equilibrar o discurso com a disponibilidade moral das massas. A greve geral de março passado surpreendeu-me: o impacto foi maior do que eu esperava!

2. Segundo problema. Por outro lado, existe cada vez menos disponibilidade moral das massas para lutar contra as medidas de austeridade. Quem faz alguma coisa de prático tem sido obrigado a recuar nas suas propostas. Assim é alvo de duas crítica:

  • A crítica esquerdista, que imagina que as massas deixam de lutar porque somente lutarão com um discurso radical de esquerda. Isto é, acreditam que o recuo é dos dirigentes (e, por isso, as massas os abandonaram) e nunca das massas mesmo. Caiem no erro de discutir quem é mais de esquerda quando as massas lhes fogem pela direita.
  • A segunda crítica é a oportunista – da esquerda que já adotou a prática da política burguesa. Quando as coisas correm mal refunda-se algo igual. Eis o que é o congresso das esquerdas de Rui Tavares, Carvalho da Silva e Boaventura Sousa Santos.

É verdade que o PCTP/MRPP é o maior esquerdista da actualidade. E o mais importante construtor da luta tem sido a CGTP. À direita da esquerda, entre os oportunistas, temos tido Boaventura Sousa Santos e seus aios. Não obstante, não simplifiquemos as coisas. O PCP, em especial as suas bases, têm atuado como esquerdistas em relação ao movimento dos Indignados cujos dirigentes, por sua vez, agem de forma oportunista com a CGTP. Quando uma organização de esquerda toma a dianteira, as outras assumem posições esquerdistas ou oportunistas* em relação ao seu trabalho… que, pela necessidade de envolver-se com as massas, está quase sempre certo!

De todos os modos, o mais importante é que nem esquerdistas, nem oportunistas (a direita da esquerda), nem os “centristas” da esquerda se preocupam em entender a razão pela qual, atualmente, as massas lhe fogem a todos pela direita.

3. Argumento. A análise da disposição moral das massas tem sido feita neste blog com muito cuidado. Tenho dito que, apesar das massas poderem discordar das medidas concretas do governo, concordam na generalidade com a política de austeridade. Isto deve-se ao facto de eles tomarem como causa da crise o abuso do poder no Estado e não a dinâmica da economia capitalistas. Nesse sentido, defendem uma menor intervenção do Estado na economia quando a solução para a crise é precisamente o inverso.

Ora, é neste ponto que o Congresso das Esquerdas falha. Como já disse aqui, ao buscar um programa mínimo consensual, reproduz todos os preconceitos acerca da corrupção, do abuso do Estado e da moral dos políticos. Isto é, reproduzem tudo aquilo que leva os portugueses a concordar com o “emagrecimento do Estado” e a votar à direita.

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* Quero ser rigoroso na definição de oportunismo de esquerda. Trata-se da pretensão manifesta de “refundar” um movimento, sem novidades claras ou significativas. Até porque, quando se colocam em jogo novidades significativas, não se trata mais de uma refundação, mas de um movimento novo. (O movimento indigenista, na América Latina, derivou do movimento camponês. Mas não refundou aquele: surgiu como novo ao lado dele). Deste modo, a única coisa que se pretende mudar nestas refundações – autênticos giros de 360º – é substituir os que assumem a direção formal ou, mais das vezes, informal/moral do movimento.

13 de Julho de 2012 Posted by | Ideologia, Sociedade portuguesa | , | 7 comentários

A classe média

Acabo de ler o livro Classe média: ascensão e declínio de Elísio Estante. Em primeiro lugar, vale dizer que a atual briga entre dois sectores da burguesia (a contrução civil e a banca nacional contra a burguesia internacionalizada), se traduz numa briga entre duas formas de coordenação: respetivamente, a maçonaria, de um lado, e as fundações e outros think-tanks, de outro. Assim, deve estar-se atento à coincidência entre os recentes ataques à maçonaria e o lançamento da interessante coleção de ensaios da Fundação Francisco Manuel Soares. De modo algum me parece que alguém tenha coordenado ambos os acontecimentos. Não obstante, acredito que ambos são filhos do mesmo fenómeno: a perda de força do sector da  construção civil para os exportadores. Consequentemente, as estruturas erigidas pelos primeiros (a maçonaria) se tornam mais frágeis aos ataques; e as estruturas comandadas pelos segundo começam a aparecer, empurradas tanto pelo sucesso dos seus mecenas quanto pelo espaço deixado livre pelas outras. Independentemente do conteúdo da análise, ela contribui para um disputa entre frações da classe burguesa para a qual ninguém que se considere de esquerda deve contribuir.

Em segundo lugar, tenho alguns problemas com a definição de classes utilizada. A esquerda mais tradicional não faz melhor. As classes existem como coisas; o que está em jogo é que critérios utilizar para distinguir um e outro grupo. Para mim, em certa medida, as classes não passam de uma abstração (ver aqui também). Em certos momentos da história do capitalismo, a taxa de lucro e, por isso mesmo, o capitalismo não poderá ser mantida sem um abaixamento geral dos salários. Nesse momento a sociedade se polariza entre os a favor e os contra, chamem-se proletários e capitalistas, chamem-se 1% e 99%. O pequeno empresário em vias de proletarização encontra-se num lugar ambíguo e o modo como vai agir nesse momento depende da conjuntura política do momento. Assim como a pressa em encontrar soluções, por aqueles 1%, vai depender a mesma conjuntura. E, finalmente, o modo como os 99% vão entender essa crise está igualmente dependente pelas mesmas condições.

Em resumo, é o processo de expressão na política daquela contradição económica que agrupa as pessoas em torno de interesses, e permite que elas sejam classificadas. E elas são classificadas pelos outros e por eles mesmos antes de ser classificadas pelo sociólogo. E pela natureza daquela contradição é natural que sejam duas classes principais em disputa. Mas a existência de outras contradições secundárias coloca outras divisões à sociedade, permitindo falar de outras classes e de frações de classe. (Assim que é um disparate afirmar que a classe média real [calculada pelo sociólogo] é menor que a classe média virtual [aqueles que se reconhecem como classe média]. Em certa medida só existe classe média virtual; o que é real é a contradição entre capital e trabalho. Consequência desta opção de coisificar a classe é o obscurecimento e a reificação da dinâmica económica. O sociólogo faz referência a ela; mas não é capaz de explicá-la. Torna-a algo dado com o qual se deve viver o melhor possível, mas nunca transformar).

Posto isto, vale a pena dizer que a classe média existe na medida em que uma segunda determinante se coloca aquela primeira. Nos momentos em que o capitalismo se expande e, por isso, o lucro e o salário podem crescer ao mesmo tempo, a expansão dos salários não se dá ao mesmo ritmo, gerando uma diferenciação entre trabalhadores. Por outro lado, o maior poder de compra da sociedade permite que trabalhadores invistam em pequenos negócios, situados nos interstícios do capital. Trata-se de uma posição social complexa e pouco estudada, na medida em que o conceito de pequenos burgueses levou os marxistas a analisá-los a partir da contradição entre capital e trabalho que, creio, não serve para os definir.

Expostas estas duas considerações, vale a pena sublinhar a parte interessante do livro. A classe média portuguesa cresceu a partir da década de 1960 e, sobretudo, a partir da Revolução dos Cravos. Mas o que cresceu foi uma classe média estável, dependente do Estado, uma vez que se empregou na função pública: professores, profissionais da saúde e especialistas da administração pública. E foram estes os setores que permitiram o desenvolvimento de outros, como a advogados, jornalistas, etc. Com a contração do Estado, o sociólogo prevê uma homogeneização da classe trabalhadora repentina. Infelizmente eu acredito que uma classe trabalhadora homogeneizada não faz mais rapidamente a revolução que uma classe trabalhadora diferenciada.

7 de Fevereiro de 2012 Posted by | Economia, Sociedade portuguesa | , , , | Comentários Desativados em A classe média

O trunfo da direita

Se estivéssemos a jogar à sueca, podíamos afirmar que o governo gastou o seu melhor trunfo quando ainda estão bastantes pontos em jogo. O primeiro ensaio tem pouco mais de um mês: o Correio da Manhã publicou que Vítor Gaspar tem a alcunha de Salazarinho entre os seus pares. A estratégia de marketing correu bem. Há dias Passos Coelho deu-se ao luxo de comparar as suas opções com as de Salazar. As medidas de austeridade são assim, de facto, corretamente comparadas com a poupança de Salazar. (Não é este o assunto deste post, mas recomendo este artigo para quer queira ver quanto a relação entre crescimento e poupança, defendida por Passos Coelho e por Oliveira Salazar, é falsa até do ponto de vista do capitalismo).

O efeito da notícia foi o esperado. Como comentei aqui, quando o debate político se fica pela oposição entre o honesto e o corrupto (uma política onde não discute política), quando, ao mesmo tempo, a ideia de honestidade se baseia num moral conservadora, é natural que portugueses já chamem por Salazar. A esquerda equivoca-se e junta-se à festa, associando Passos Coelho a Salazar, contribuindo assim para a campanha deste governo. Salazar está envolvido numa áurea de poupança e honestidade à qual o governo apela para proteger-se. (Essa “áurea de honestidade” deve ser explicada. Algumas hipóteses já expus aqui, mas estas são certamente insuficientes).

A jogada é arriscada. Este governo já vem dando sinais de desgaste desde o final de 2011. À medida que o governo se for desgastando, o PSD irá certamente colar-se cada vez mais à imagem Salazar. Isso poderá salvá-lo. Mas também poderá fazer o contrário: este governo do PSD arrisca-se, fracassando, a levar com ele a boa imagem de Salazar. E pode ser que aí os portugueses compreendam, finalmente, que NÃO É em poupar que está o ganho!

3 de Fevereiro de 2012 Posted by | Portugal, Sociedade portuguesa | , , | Comentários Desativados em O trunfo da direita