Fala Ferreira

Assim me saúdam os amigos de Guatemala.

A luta ideológica II

(Versão atualizada de um texto publicado aqui a 11/12/2012)

Num entrevista dada por Žižek à Al Jazeera (ver texto em português e vídeo em inglês), o filósofo esloveno afirma que a luta de classes foi colocada na ordem do dia pela conjuntura económica. O que fica em aberto é quem assumirá a liderança dos trabalhadores nessa luta: as organizações de esquerda ou as de extrema-direita. Ele refere-se ao Tea Party e às ocupações em Wall Street. Mas o mesmo é válido para o PNR e para Portugal. Nesse sentido é necessário rever a ordem de prioridades daqueles que se propõe como vanguarda do movimento operário. Cada vez mais acredito que o trabalho de uma vanguarda revolucionária não é – pelo menos hoje não é – lutar contra o capitalismo. Essa é a tarefa dos trabalhadores enquanto classe. O trabalho de uma vanguarda revolucionária é lutar contra sentidos* equivocados que florescem no movimento impedindo a classe de lutar contra o capitalismo.

Em termos teóricos e práticos, o sentido político de qualquer grupo se constrói sob o alicerce da sua identidade. Em outras palavras, sobre uma resposta pré-dada – tacitamente aceite e por isso mesmo poucas vezes refletida – a duas questões: ‘quem somos?’ e ‘contra quem estamos?’. Isto é, quem somos nós por oposição a eles? Eis o alicerce de qualquer programa político e aquilo que realmente significa ideologia. (Estou a aceitar que a oposição nós/eles é por natureza constitutiva do pensamento humano, como diz a etologia. Mas tenho etnografias de sobra para demonstrar que a linha divisória entre o nós e o eles, inevitavelmente existente, muda com a história, ou seja, ela é culturalmente determinada).

Sendo hoje o movimento operário marcado por uma avalanche de novas pessoas, a ex-classe média proletarizada, e ainda que nele permaneçam antigos ativistas de esquerda, ele é um movimento novo. Por isso mesmo, a sua ideologia (no sentido acima) é determinada pela conjuntura (atual) que o produziu. Num momento marcado pelo afastamento entre eleitos e eleitores e, por outro lado, por uma política baseada em críticas ad hominem (como tentei argumentar aqui), seria de prever que a conjuntura não pudesse gestar outra coisa que um movimento de contestação incapaz de superar esse tipo de críticas. A ideologia generalizada é marcada portanto por um nós=”simples cidadãos” e um eles=”políticos corruptos”. Mesmo à esquerda, onde a oposição entre trabalhadores e capitalistas permanece, a análise dialética da relação entre trabalho e capital é substituída por juízos morais acerca dos “trabalhadores” e dos “capitalistas”/”políticos” per se (veja-se este vídeo).

O afastamento de uma análise dialética da realidade – que hoje é apenas feita por uns quantos dirigentes, mas raramente compreendida pelas bases – tem efeitos nefastos. Em primeiro lugar, inverte a realidade das coisas. Coloca a culpa da crise nos interesses privados de alguns e não nos mecanismos do capitalismo: a propriedade privada e os efeitos da concorrência. Sem o domínio da dialética, as pessoas tornam-se incapazes de compreender os mecanismos do capitalismo, restando-lhe apenas o lado ético, a moral dos dirigentes, para colocar as culpas. Deste modo, a própria esquerda elimina a possibilidade dos trabalhadores para lutar contra o capitalismo. Sem entrar em mais considerações, basta dizer que se a culpa da crise está no número de pessoas que “vivem à custa do Estado”, então reduza-se o Estado e a sua autoridade. Se a crise foi provocada pelo decréscimo da taxa de lucro, então o Estado deve fortalecer-se e intervir na economia para eliminar os mecanismos que provocam esse decréscimo. Finalmente, munidos por uma visão ética da realidade, os cidadãos acabam por apoiar políticas condenadas ao fracasso.

De fracasso em fracasso, os trabalhadores irão exigindo políticos cada vez mais “honrados”, sem abandonar uma conceção tradicional de honra. Assim seguirão no caminho do fascismo. E a esquerda, mantendo-se no plano ético, sem jamais passar ao dialético, verá sempre o crescimento dos partidos de extrema-direita (por exemplo, o PNR) enquanto marionetas que os capitalistas criam para controlar os trabalhadores. Quando, realmente, eles são o resultado de todo o processo que acabo de descrever. Como disse Walter Benjamin, “um partido fascista nasce da derrota de um partido revolucionário”.

* No duplo sentido: razão de existir e direção. Direção também enquanto caminho e enquanto corpo de dirigentes. São três níveis de análise política que jamais podem ser tratados por separado, como argumentei aqui, sob pena de resultar daí uma análise equivocada.

A análise ética do crescimento da extrema-direita, ou da crise, identifica-se por qualquer teoria da conspiração, como este vídeo ou aquele discurso que afirma que o PNR é uma manobra dos capitalistas para enganar os trabalhadores. A diferença entre a ética e a dialética é que a primeira acredita que as pessoas fazem a conjuntura. Já a dialética afirma que a conjuntura estabelece as oportunidades – que as análises dialéticas, como tentei fazer aqui, procuram identificar – e as pessoas podem aproveitá-las ou não.

31 de Dezembro de 2011 - Posted by | Ideologia, Sociedade portuguesa | , , ,

1 Comentário

  1. Muito boa a reflexão Zé! Feliz 2012! Que no próximo ano encontrermo-nos mais!

    Comentar por renam | 1 de Janeiro de 2012


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