Fala Ferreira

Assim me saúdam os amigos de Guatemala.

As opções de Dilma Russef

As notícias das últimas semanas não me surpreendem. Sempre disse que o governo brasileiro passou do neodesenvolvimento ao neoliberalismo em dezembro de 2012. Portanto, tudo aquilo que, segundo o PT, iria acontecer caso Aécio Neves vencesse as eleições aconteceu no dia seguinte à vitória de Dilma Russef. Os apelos à unidade da candidata eleita, claramente dirigidos à burguesia financeira, e prontamente rerspondidos por ela. A inflação transformada em problema central da economia nacional. E o anúncio do arrocho salarial dos funcionários públicos (aqui também). E, mais, quando Dilma se transforma na imagem que o PT criou de Aécio, Marina afirma «que governo passa por dose de realidade» mostrando que os três candidatos eram, de fato, iguais. (Recomendo a leitura de dois textos sobre este giro de Dilma na noite das eleições: O povo brasileiro não existe por Vladimir Safatler e Sinais trocados por André Singer).

Comentei, no Facebook, que a conjuntura brasileira só é intelegível com a análise, que eu faço de modo muito superficial, do ano de 2012. Ele não só lança uma nova luz sobre os 10 anos de neodesenvolvimentismo que findam aí como também esclarece a correlação de forças que determina a política atual do governo. Os governos de Lula da Silva beneficiaram do boom das comodities agrícolas, quer dizer, da exportação de alimentos para a China. A boa performance da economia dispôs a burguesia financeira à indiferença em face da arrojada e importante política social do governo. Quem a combateu foi o agronegócio que via não só aumentar o custo do trabalho como perder a sua influência social sobre a vida no campo. Quem tem acesso ao bolsa família não precisa mais de recorrer aos favores de um coronel ou quaisquer intermediários destes. Não obstante, foi o agronegócio que pagou essas políticas de transferência de renda e – o que se revelou mais importante no combate à pobreza – de aumento do salário mínimo. As exportações agrícolas, em primeiro lugar, permitiram aumenta o PIB e assim financiar tais políticas. E, em segundo lugar, manter uma balança comercial positiva pese ao aumento de importações para fazer face ao aumento de consumo gerado por essas políticas sociais.

A crise econômica de 2008 estilhaça este modelo em que todos ganham. Mas até 2011 os seus efeitos eram pouco visíveis pois a evolução do consumo interno, que tinha o seu motor nas políticas do governo, compensou a quebra do consumo externo. O Programa de Aceleração do Crescimento e as obras para a Copa do Mundo criaram os empregos e, logo, os consumidores que garantiram o crescimento do Brasil por mais uns anos. Mas em 2012 havia que fazer escolhas. E Dilma Russef escolhe realizar o sonho de Celso Furtado em transformar uma economia assente num setor primário com vocação exportadora para uma economia industrial voltada para o mercado interno. Esta política tem uma dimensão ética clara. No segundo caso, os trabalhadores coincidem com os consumidores, obrigando a burguesia a pagar salários mais altos. Assim, esperava Celso Furtado e toda uma geração de economistas latino-americanos, se fazia desenvolvimento. Mas para operar tal transformação era necessário enfrentar a burguesia financeira e baixar o preço do crédito (a taxa de juro) dos investimentos. Era necessário encontrar aliados e limitar os adversários. Dilma fez, em primeiro lugar, as pazes com o agronegócio e Kátia Abreu se torna aliada da presidenta. Em segundo lugar, ainda que por omissão, reforça a posição da bancada evangélica no Congresso Nacional para ampliar a sua base de aliados. Desse modo, o racista, machista e homofóbico Marcos Feliciano chega à presidencia da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados.

O governo tomou três medidas para reduzir a taxa de juro no país. Reduziu a taxa de referência, SELIC, cujo valor real, isto é, descontada a inflação andou próximo de zero; reduziu a reserva fracionada e deu indicações ao Banco do Brasil e à Caixa para canalizarem a maior disponibilidade de crédito para o investimento e não para o consumo. Esperava Dilma, com esta última medida, impôr o mesmo comportamento aos bancos privados. E esperava também o apoio da burguesia industrial e dos trabalhadores para estas medidas. Os trabalhadores, depois de 10 anos de colaboração com uma política de conciliação de classes, estavam e seguem estando desorganizados. A CUT não pode ameaçar a burguesia com o aumento da contestação social, como fez em 2005 para evitar a cogitação de um impeachment sobre Lula por causa do Mensalão. Limitou-se a publicar um comunicado em à política monetária do governo. A burguesia industrial, a quem apenas se pedia que investisse o dinheiro barato, a juros próximos de zero, se disse assustada com o nível de intervenção do governo na economia e não o fez. Como disse Maria da Conceição Tavares: «Não há pacto político tampouco porque o capital financeiro está ligado ao capital industrial. Na verdade, a indústria está assim porque parte do seu sócio menor [o capital financeiro] está virando sócio maior. E o rentismo está predominando na economia brasileira».

No final de 2012, o governo reconhece a derrota ao inverter a estratégia monetária. O Banco Central, que at então vinha intervindo no mercado de câmbio em resposta aos quantative easings por forma a frear a descida do dólar e promover as exportações brasileiras, passa a agir no sentido inverso para baratear as importações e controlar a inflação. Em 2013 viriam os aumentos da taxa SELIC com o mesmo objetivo de controlo dos preços. Ou seja, o governo de Dilma Russef que foi surdo ao “pânico” do PIG com o dragão da inflação durante o inverno de 2012, começa a assumn]ir políticas neoliberais para combatê-la. Hoje o combate da inflação é prioridade, em consequência da assunção da derrota há quase três anos. Com a decisão do BC a 26 de dezembro de 2012 o sonho de Celso Furtado foi abandonado e o neodesenvolvimentismo deu lugar ao neoliberalismo. A única diferença entre Dilma e Aécio nestas eleições é que o segundo é neoliberal por convicção e a primeira é-o por falta de opção! Ou, mais exatamente, porque a CUT não teve capacidade para pleitar a política do governo – e o culpado é o PT. Ganhasse quem ganhasse, e ainda que ganhasse Marina Silva. o governo já estava entregue a três setores: o agronegócio; a burguesia financeira e a bancada evangélica. Qualquer que fosse o governo, seria uma continuidade do observado em 2013 e 2014.

Entretanto, as polarização entre esquerda e direita que ocorreu nos últimos dias da campanha eleitoral fez alguns estilhaços naquela coalizão dominante. Os mais destacados porta-vozes da bancada evangélica manifestaram o apoio explicito a Aécio Neves que perdeu. Dilma Russef ficou livre e, de certa forma, foi obrigada a negociar apoios à esquerda com o PSOL e Jean Willys. Só o futuro dirá se, posteiormente, Dilma não se “corrige” também neste quisito. Afinal a bancada do PSOL tem poucos deputados para servirem de apoio a coisa alguma. Não obstante lembremos três coisas. Não há mais uma burguesia financeira para enfrentar – as pazes com ela estão feitas. Existe uma esquerda do PT que quer ver medidas de esquerda no governo e medidas pró minorias poderão servir para parecer de esquerda enquanto tomam medidas neoliberais. Finalmente, o conservadorismo evangélico, apesar de crescer, ainda gera muitas antipatias – daí que Jean Willys tenha participado nos comícios de Dilma, mas nem Bolsonaro nem Malafaia participaram nos de Aécio. Por outras palavras, a bancada evangélica garante votos mas não um apoio social mais amplo. Aliás, haveria que analisar até que ponto a influência que a bancada evangélica teve no primeiro governo de Dilma não foi devida a que, nas eleições de 2010, os votos evangélicos e noepentacostais decidiram a eleição. Agora foi a polarização esquerda vs. direita que o fez.

Enfim, não há duvidas que o segundo governo de Dilma Russef será neoliberal (a não ser que, por milagre, a contestação organizada nas ruas exploda!). Será patriarcal e defenderá os chamados “valores da família”? É uma questão em aberto na qual a esquerda poderá marcar pontos.

8 de Novembro de 2014 Posted by | Brasil, Economia, Feminismo, Partidos | , , , , , | 3 comentários

Nota sobre a prostituição

No domingo vi o filme As princesas de Fernando León. Hoje chamaram-me a atenção para esta notícia. O comentário que me apraz é o seguinte: A luta pela legalização da prostituição tende a fazer esquecer que a prostituição só pode ser legalizada num sistema capitalista e machista. Não quero ir mais longe, apenas chamar atenção para uma cena do filme.

Cayé, a prostituta protagonista do filme, conhece e começa uma relação com Manuel, um nerd da informática. Contou-lhe que era prostituta no primeiro encontro; mas ele não acreditou. No segundo encontro, adivinhar a profissão dela tornou-se um jogo de namorados. O terceiro encontro foi imprevisto. Um amigo de Manuel havia contratado uma prostituta, Cayé, para servir os dois. Eles não voltam a encontrar-se. A relação acaba assim: Manuel traiu Cayé ao procurar uma prostituta; assim como Cayé traiu Manuel ao prostituir-se. Não houve um quarto encontro para que os dois tivessem sequer a oportunidade de colocar os seus pontos de vista.

A pertinência da cena está na inteligência de colocar o acto de prostituir-se assim como o acto de procurar uma prostituta, ao mesmo nível – simétricos. Dois pecados que não se anulam; duas traições donde não pode sair a confiança. O erro da luta pela legalização da prostituição está em, na maioria das vezes, olhar apenas um dos lados da moeda. Ela esquece que não se pode legitimar o trabalho sexual (como gosta de dizer) sem legitimar o consumo do sexo. E, de igual modo, por simples extensão do raciocínio, sem legitimar o empresário do sexo, isto é, o proxeneta.

Afinal, o valor moral do trabalho sexual não existe em si, mas na medida em que reflete o valor do produto que vende: o serviço sexual. E tornar aceitável o serviço sexual implica não apenas tornar aceitável o trabalho sexual, mas todos os outros “pontos cardinais” da relação (neste sistema capitalista): trabalhador, consumidor e patrão/investidor. E, ao mesmo tempo, isto não se faz sem transformar a relação fortemente hierárquica entre o sexo por dinheiro e o sexo por amor. O valor de um é exatamente o inverso do outro.

Dilacerando o assunto, vendo-o só de um lado, aqueles que defendem a legalização da prostituição, insistem nos seus argumentos, que apenas só são válidos porque, à partida, deixam de lado todos os aspectos do problema com os quais não querem lidar.

30 de Agosto de 2011 Posted by | Feminismo, Ideologia | , , | Comentários Desativados em Nota sobre a prostituição

Feminismo da diferença?

Nas minhas incursões sobre o feminismo, recentes e pouco profundas, deparei-me com um  texto de Victoria Sendón de León num blog de uma amiga (que, a propósito, recomendo).

A ideia de feminismo da diferença, ou de combate à desigualdade no reconhecimento da diferença, ou – ainda de outro modo – a diferença entre diferença e desigualdade é um problema que me interessa. Porque tudo o que leio me leva a crer que vemos por pares de oposição: homem/mulher, adulto/criaça, velho/jovem, antigo/novo, fora /dentro, rico/pobre, direita/esquerda, alto/baixo, etc. João Aniceto atribuiu isso ao facto de termos duas mãos, dois olhos, dois pés, enfim, de o nosso corpo poder ser repartido em duas metades. Mais tarde, pelas minhas leituras de Pierre Bourdieu, fui levado a crer que essas oposições implicam sempre um dominante e um dominado.

Em suma, esperava do texto uma janela para que nos permita sair do quarto-escuro do pensamento dicotómico.

De facto, a autora demanda-nos sair dele. Crítica o feminismo da igualdade, o de Simone de Beauvoir, de “querer transformar as mulheres em homens”. O universo (a economia, a cultura, a religião, etc.) é masculino e querer introduzir a Mulher nesse universo (competitivo, individualista, insustentável, etc.) é obrigar a mulher a ser tudo isso, a ser homem. A superação implica a construção de uma visão do mundo, de uma ordem simbólica, desde as mulheres – da pluralidade de femininos, diferente da masculina (que, por acaso, a autora não reconhece pluralidade).

A primeira questão que me levantou o texto foi a de um descolamento do mundo simbólico – o mundo das ideias – do mundo material ou do mundo das coisas. Compreendo que é muito pouco exigir a entrada da mulher no mercado de trabalho, ou pior, da mulher na política por mecanismos de quotas, sem alterar esse mercado de trabalho e essa política organizada por valores masculino (embora – acrescento – não todos os masculinos, mas um certo tipo: branco, escolarizado, empresário, empreendedor, etc., no qual eu, homem, tampouco me reconheço).

Por outro lado, me parece produto de um posmodernismo de má qualidade que esse mundo simbólico comece e termine nele mesmo. Como se o material não produzisse o simbólico; como se a criança nascida e criada numa família cujo pai trabalha na rua e a mãe trabalha em casa não enraizasse com a ideia que o lugar do homem é na rua e o da mulher é na cozinha. Como se fosse apenas por palavras que os pais machistas educassem crianças machistas. Podemos ficar aqui a jogar o tradicional jogo do ovo e da galinha, mas – como já tentei abordar noutro post – o material determina mais o simbólico que o inverso.

Daí, que ao contrário do que defendi em outros momentos, hoje acredito nas cotas na política (que a autora desdenha por não alterarem a ordem simbólica da política). O meu argumento é que ver mulheres na Assembleia da República irá permitir que as mulheres cá fora começassem a reparar que a política não é só coisa de homens e, deste modo, a não aceitarem ser excluídas da política.

A segunda questão coloco é o facto da autora ter afirmado, no fim do texto, ter conseguido superar o pensamento dicotómico. Usa uns quantos parágrafos e faz referencia a um outro texto seu. Fiquei curioso, mas céptico. Tentarei conseguir o texto. Mas fica a pergunta: como quem superou o pensamento dicotómico, somente conseguiu explicar o que é o feminismo da diferença pela crítica ao feminismo da igualdade (de Beauvoir)? Ao opor pensamento holístico a pensamento dicotómico, não está a autora a ser dicotómica e não holística?

Resta-me ceder a um intelectualismo desnecessário e que, pese aos meus esforços, não consigo evitar. E citar Bourdieu (que, de resto, Victória Sendón cita igualmente):

A universidade da Califórnia, em Santa Cruz, espaço destacado do mundo ‘posmoderno’, arquipélago de colégios dispersos numa floresta que só se comunicam pela internet, foi construída nos anos sessenta, no alto de uma colina, nas vizinhanças de uma estância balnear para aposentados ricos, sem industrias: como não acreditar que o capitalismo se dissolveu num ‘fluxo de significantes desligados de seus significados’, que o mundo é povoado de ‘cyborgs’, ‘cibernetics organisms’, e que estamos entrando na era da ‘informatics domination’, quando se vive num paraíso social e comunicacional, onde foi apagado qualquer vestígio de trabalho e de exploração

Leiam o texto de Victória Sendón de León e retirem-me a dúvida: estou a ser machista ou ela escreve da comodidade da sua poltrona de douta filósofa?

29 de Dezembro de 2010 Posted by | Feminismo, Ideologia | , , | Comentários Desativados em Feminismo da diferença?