Fala Ferreira

Assim me saúdam os amigos de Guatemala.

O povo é sereno

Guardo uma vaga lembrança – o que quer dizer que posso está a inventar em parte – de um debate na RTP com representantes das juventudes partidárias cujos partidos têm assento na Assembleia da República. Foi antes de 2003. A Juventude Comunista estava representada por uma pessoa que hoje é militante do PS, mas que naquela altura era visto como uma (desculpem o jargão futebolístico) “jovem promessa”. Uma pergunta que lhe foi feita, e a sua resposta, guardo-a até hoje na memória. “Quando é que começou a fazer política?” “Aos seis anos, quando entrei para o clube de natação”. A resposta não foi aquela que a jornalista esperava; nem, certamente, os esperadores. Eu que, na época, privava com ele sabia que ele tinha “descoberto” Che Guevara já no ensino secundário e que, procurando saber mais, acabara por aderir à JCP. Mas a resposta é interessante porque é tipicamente de esquerda e, em particular, comunista: “fazer política” é participar na vida pública, na vida coletiva.

Vem isto a propósito de todo o debate em torno das declarações de Soares na Aula Magna. Os partidos do governo (aqui Paulo Portas) e, não coincidentemente, os representantes dos patrões – por outras palavras, os representantes dos patrões e os representantes dos patrões – acusaram-no de incitar à violência. À esquerda, como neste texto de Baptista Bastos, as declarações de Soares foram repetidas, com o ensejo seguramente de que se tornem verdades.

Mas curioso, e interessante, é o texto de José Manuel Fernandes: O povo pede desculpa por ainda não ter escolhido a violência. Curioso, mas difícil de casar com as cada vez maiores preocupações da polícia e do SIS, em particular, com o surgimento de atos violentos em manifestações. É esta contradição que me intriga.

Talvez a resposta já a tenha dado aqui. O surgimento de uma política fetiche (§1) leva a que os cidadãos descreiam na Política (§2); leva a que eles vejam na política uma pura disputa pelo poder, pronta a desviar tudo e todos do rumo certo. (“Que vejam”! A questão é puramente subjetiva, de percepção. Supor um “rumo certo”, do qual a disputa partidária afasta o país, significa que a pobreza do debate partidário desqualificou as pessoas, subtraiu às pessoas as informações pertinentes, para participarem na política. Supor um “rumo certo” é esquecer que a política é a escolha de um rumo, o que implica a existência de vários rumos igualmente aceitáveis e possíveis – não para todos, mas sim para alguns e não para outros. A Política, apesar de tudo, continua a ser essa escolha de rumos. Mas a pobreza do debate político, por um lado, e a suposição de um rumo certo, por outro, têm empurrado essa escolha do debate eleitoral para as negociatas com os lobbies).

Se a esquerda, como diz JM Fernandes, não tem conseguido apropriar-se do descontentamento da população é por isto. Como mostra a estória que contei acima, a esquerda que é esquerda tende a querer levar a política para todo canto; nas palavras de Dagnino, a ampliar cada vez mais o espaço público. Os cidadãos, que tomam a disputa partidária do poder por toda a política, são naturalmente adversos à política de esquerda. A repulsa é maior até que pelos partidos de direita, responsáveis pelo desgoverno do país. Tais cidadãos não conseguem deixar de ver a esquerda como aqueles que querem levar a partidarite para todo o lado, ainda que seja outra a concepção de política que orienta a esquerda. (O PS, como se sabe, é de esquerda na oposição, de centro em eleições e de direita no governo).

Mas se aparecer aí um D. Sebastião, que queria despolitizar a política, despartidarizar o governo, acenderá a pólvora que a austeridade semeou em poucos segundos. Portugal está mais para Mussolinis do que para Lénines.

24 de Novembro de 2013 Posted by | Ideologia, Partidos, Portugal | , , , | 4 comentários

O sufrágio universal contra a democracia

Há algum tempo que venho refletindo sobre o papel que a democracia tem jogado enquanto ideologia conservadora. Em 2011 escrevi este pequeno texto. Em resumo, eu pego nas reflexões de Pierre Bourdieu sobre o conservadorismo do jornalismo e o aplico aos partidos. Quem ler atentamente verá que eu estou a criticar, sobretudo, o PS em oposição ao PCP. Recentemente eu voltei-me para leituras que me permitissem aprofundar esta hipótese. Recentemente li Cinismo o falência da crítica (V. Safatle) que tenta explicar porque as pessoas aderem a uma ideologia na qual não acreditam. Páginas tantas escrevi este texto. Logo depois, li Estado de exceção (G. Agamben) e estou lendo Bonapartismo e democracia (D. Losurdo). É o cruzamento entre estas duas últimas leituras que quero partilhar a reflexão que se segue.

Ambos concordam que nos dias de hoje o voto deixou de influenciar a políticas. O poder do governo é tanto que pode decidir o que lhe prover sem que as eleições possam interferir nessas decisões. Ambos estão de acordo que isso se deve ao fato do poder executivo ter assumido funções que antes competiam ao legislativo. E, assim, a única decisão que é tomada democraticamente é a escolha do “ditador”. O lugar da disputa de ideias foi tomado pelo carisma de uma personalidade. Por fim, ambos apontam o governo de Franklin Roosevelt como modelo acabado desta nova forma de fazer política.

O desacordo começa por ser teórico-metodológico. Agamben é foucaultiano. Logo, a sua análise supõe uma história contínua de transformação de ideias. A oposição entre “Estado de direito” e “Estado de sítio”, clara na Revolução Francesa, foi-se apagando. Hoje, vivemos num Estado onde o direito é ultrapassado em nome do direito sem que o “Estado de sítio” necessite de ser formalmente declarado. Compreende-se então porque a chave desta transformação é a perda de poder do legislativo: elegemos executores que também legislam e legisladores que, no melhor dos casos, entretêm o povo. É assim também que o carisma do político se sobrepõe à decisão da política a ser seguida. A definição da lei torna-se uma tarefa secundária em relação a execução da lei.

Losurdo é marxista. Para ele a história das ideias não é linear mas avança ao sabor da luta de classes. Seu livro não é tão claro acerca da “natureza” dessa mudança, mas é mais claro sobre o seu processo. A expansão do sufrágio universal, na segunda metade do séc. XVIII e no séc. XIX, correu par e passo com o temor da classe dominante. O voto dos “não proprietários” (dos trabalhadores) não teria outro efeito senão o confisco da propriedade privada. Somente um executivo forte, suficientemente distante dos eleitores, suficientemente carismático (comparável a um monarca), poderia “controlar” dos trabalhadores. Este modo de fazer política começa a ser desenhado nas duas últimas décadas do séc. XVIII. Losurdo sustenta este argumento com artigos de opinião e editoriais de jornais que acompanharam a redação da Constituição Federal norte-americana em 1787.

A abordagem de Losurdo permite sustentar um argumento que eu já vinha defendendo. A transformação da Política em politica fetiche, a passagem do debate de ideias para o debate de pessoas, deu-se com o fim ou a desqualificação das organizações intermediárias entre o “povo” e o governo. A produção de ideias pelos sindicatos e outras organizações de interesse foram combatidas – em nome da “vontade genuína” do indivíduo – para dar passo à propaganda do carisma do candidato. A transformação dos partidos é concomitante da subordinação do executivo ao legislativo. Os partidos começaram por ser “máquinas” de propaganda de ideias que lhe permitiam chegar ao legislativo. Hoje são simples máquinas de propaganda de candidatos que buscam chegar ao executivo. – Losurdo mostra como os Pais Fundadores dos EUA estão perfeitamente conscientes do “perigo” do debate de ideias na Assembleia Legislativa e é por isso que reforçam os poderes executivos.

O preço a pagar por isso é o fascismo soft em que vivemos atualmente.

20 de Julho de 2013 Posted by | Ideologia | , , , | Comentários Desativados em O sufrágio universal contra a democracia

Política e abstenção

Nas eleições legislativas de 2011, cerca de 4 milhões de portugueses abstiveram-se. Provavelmente, apenas 3 milhões, uma vez que, a acreditar nestes números, 11% da abstenção se deve à desatualização dos cadernos eleitorais. É comum ver na abstenção um ato político – uma forma de protesto, um ato político contra a política e, em última análise, contra a corrupção. Mas é uma ideia falsa! Não, como dizem alguns, porque a política está fatalmente ligada aos atos eleitorais. Mas precisamente, porque a política não se resume a atos eleitorais, nota-se que a abstenção é apatia! Pois, aqueles que se abstêm, ficam-se por aí. Nenhuma marcha; nenhum abaixo-assinado; nada. Que reclamam os 3 milhões de abstencionistas. Três milhões de coisas diferentes, ou seja tudo e nada!

Tanto a abstenção como a ideia que a abstenção é uma forma de protesto resultam da incompetência política. Isto é, da incapacidade de perceber a utilidade da política. Da incapacidade de distinguir os políticos. Para quem se abstém os políticos são todos iguais! Querem todos o mesmo. Querem? É óbvio que não. Mas a culpa não é dos eleitores.

Nos últimos anos, os partidos do centro não têm feito outro coisa que despolitizar a política. Carlos Abreu Amorim, neste vídeo, é um exemplo disso. Ele acusa o PCP de querer fazer política com o futuro dos trabalhadores dos estaleiros de Viana do Castelo. Já Durão Barroso afirmava que há assuntos demasiado sérios para serem debatidos em campanha eleitoral.

É assim que o centro defende os lobbies! Transforma a política num circo. As decisões sérias toma-se nos corredores de S. Bento com os amigos! E os eleitores fazem-lhes a vontade. Abstêm-se, porque os políticos “são todos iguais”. É verdade que há alguns, como os deputados do PCP, que não querem brincar de palhaços. Mas esses não são políticos sérios.

26 de Julho de 2012 Posted by | Ideologia, Portugal | , , | Comentários Desativados em Política e abstenção

O avanço do fascismo na Europa

A esquerda debruça-se com um problema: o avanço do fascismo na Europa. A dificuldade em confrontá-lo está na dificuldade em percebê-lo. O Ângelo, da secção internacional do PCP, escreveu este texto que é um bom ponto de partida. Não obstante, ao ficar com um pé na ética e outro na dialética, isto é, ao ficar entre a “teoria da conspiração” e a análise das condições objectivas, não chega à essência do fenómeno.

O Ângelo coincide com Žižek que, citando Walter Bejamin, afirma que a acessão do fascismo é o indicador da derrota de um partido revolucionário. Avança ao dizer que o partido revolucionário saiu derrotado na luta contra o capitalismo pouco preocupado com a acessão do fascismo. Mas deixa de ver os mecanismos objectivos pelos quais se dá essa luta.

Num texto meu já de há mais de um ano tentei mostrar como o modo como os partidos discutem política subtrai aos eleitores as informações necessárias para saberem o que está em jogo na política. Os eleitores acabam por avaliar os políticos de uma forma que pode ser resumida pela oposição entre o competente vs o corrupto.

Ora, este modo de avaliação tem duas consequências. Em primeiro lugar, ninguém que não conheça um politico pessoalmente pode falar acerca da sua honorabilidade. Isto, para quem conhece os políticos à distância, torna os políticos todos iguais. E mais, independentemente dos factores económicos em jogo, a culpa de uma crise vai ser sempre – para estes eleitores desinformados – a corrupção.

A segunda consequência é colocar em jogo uma ideia de moralidade conservadora. O político honesto começa por ser aquele que não rouba. De fracasso em fracasso, os eleitores passam a exigir cada vez mais veementemente que os políticos correspondam a este ideal de moralidade: sejam homens, brancos e de fato e gravata. A mini-saia da Gestora de um programa de  governo passa a ser o sinal da falta moral do governo, o sinal da sua corrupção.

Portanto, ao invés de protestarem contra o avanço do fascismo, os partidos de esquerda deviam apostar em atacar as raízes do problema. Isto implica duas coisas

  1. Entender que o fascismo é um movimento da classe operária desinformada, que acaba suportando a elite burguesa mais reaccionária. Isto não implica, em nada, uma manipulação consciente dos burgueses sobre os operários.
  2. Ele é boa medida resultado da despolitização da política. E essa despolitização da política alcança também as suas bases. Basta falar com alguns militantes para saber que eles acreditam que o principal problema do capitalismo é ser corrupto.

Isto exige:

  • Uma forte formação de quadros para que entendam que a crise se deve à tendência ao decréscimo da taxa de lucro e não à corrupção. O seu enraizamento na sociedade permitirá espalhar a mensagem.
  • E um cuidado na formulação da mensagem que, ao mesmo tempo que combata as políticas de direita, tenha o cuidado em instruir os eleitores. Nesse sentido é preciso mostrar que, sem revolucionar as bases da economia, os actuais políticos não têm outra hipótese senão fazer o que actualmente fazem.
  • Combater o Correio da Manhã, o que não será fácil…

A tarefa da esquerda não é informar os portugueses; é levá-los a uma mudança de paradigma, no sentido kuhniano. Um programa que eu já tinha indicado em Dezembro do ano passado.

22 de Abril de 2012 Posted by | Europa, Ideologia | , , | Comentários Desativados em O avanço do fascismo na Europa

Política fetiche

Numa troca de emails, procurei expor algumas considerações acerca do abstencionismo político que vão na linha de textos já escritos aqui e aqui no blog.

Vou começar por expor a minha conclusão: os partidos afastam-se dos cidadãos, e perdem qualidade, por não querem discutir política. Esta reflexão puramente hipotética e especulativa baseia-se em três argumentos. Primeiro, numa definição concreta de política. Segundo, numa especulação acerca dos mecanismos que criam este afastamento. Terceiro, com base no anterior, teço algumas considerações sobre como recuperar a qualidade dos partidos políticos.

A) Considero que questões propriamente políticas são aquelas que interessam desigualmente aos cidadãos. Em primeiro lugar, porque os indivíduos não todos iguais, portanto a mesma decisão não afeta igualmente a todos. Em segundo lugar porque os interesses estão normalmente em conflito. O primeiro argumento é óbvio; o segundo é remetido para a tentativa vã de buscar um ponto intermédio. Vejamos:

Para não cairmos no tradicional conflito patrão/operário, pensemos na seguinte questão: a política do Estado para ajudar o crescimento económico deve voltar-se para o apoio às exportações ou para a dinamização do consumo interno? Dirão que é possível chegar a um meio termo. Mas a verdade é que num “meio termo” estamos sempre. O que se trata é de deslocamentos do “meio termo”. Esse deslocamento far-se-á em favor dos exportadores ou dos produtores para o mercado interno? Dirão que não são opções em conflito! Também será um equivoco. A dinamização do consumo interno faz-se aumentando salários ou a despesa do Estado. Para os exportadores isso representa apenas custos, salários e impostos respetivamente.

E finalmente, as questões onde todos estamos igualmente interessados não são propriamente políticas, porque não precisam de ser politicamente negociadas. É o caso da assistência às vitimas de um terremoto, ou algo semelhante.

B) No entanto, os partidos estão interessados em conseguir votos em todos os quadrantes sociais. Votos trabalhadores e patrões; de pequenos comerciantes e de grandes empresários; do sector da exportação ou do  sector do consumo interno. Isso obriga a estratégias, às vezes, muito criticáveis. Como de um célebre candidato à primeiro-ministro que afirmou que afirmou que “a Europa é um assunto demasiado sério para discutir em campanha eleitoral”. Mas estes são casos raros. Mais comum é usar uma linguagem vaga. Poucos dos que afirmam hoje que é necessário reduzir a despesa do Estado têm a coragem de Medina Carreira ao afirmar que é preciso reduzir a despesa com médicos, professores e reformados. A maioria fica-se por um “é necessário cortar na gordura do Estado”. Estes não se estão a referir aos luxos dos políticos porque eles sabem, como Medina Carreira afirmou há dois dias na SIC, é preciso cortar muito mais despesa do que aquela que existe aí.

Mas essas nem são as estratégias mais importantes. Existem outras duas, tão enraizadas, tão aparentemente naturais, que nem sequer são conscientes. A primeira, e mas importante, é reduzir os embates políticos a embates entre partidos. Tudo é apresentado como um braço de ferro entre esquerda e direita, um partido e outro, geralmente associado a uma caça de votos, e nunca pelas suas consequências na vida real. Os partidos encontram na comunicação social o melhor amigo destas estratégias. Um aumento do salário mínimo, como aconteceu recentemente no Brasil, é apresentado nas televisões como um braço de ferro entre governo e oposição, acerca do valor em causa, sem qualquer referência às consequências macro-económicas e sociais que dele podem resultar.

A segunda é reduzir a diferença entre os partidos ao carácter moral dos seus dirigentes. Cada vez mais, o que está em causa numa campanha eleitoral é quem é o mais competente, o mais honesto e o menos corrupto (o que sem dúvida sobrevaloriza o papel da corrupção no diagnóstico dos problemas da economia portuguesa). Aquilo que diferencia os políticos em termos de visão de país, não é tocado em campanha. Mesmo essas diferenças que se escondem por detrás de disputas partidárias e sofismas, comentadas atrás, desaparecem numa campanha eleitoral. Podemos observá-lo nos dias que correm.

C) Nestas condições, é de esperar que os cidadãos não contem com a informação pertinente para decidir politicamente, isto é, votar ou abster-se. O debate dos partidos torna-se ininteligível para os eleitores. Os debates políticos ora parecem guerras de seitas, ora entram apelam para argumentos que os eleitores podem avaliar. Quando o debate político se transforma num debate de partidos, torna-se, aos olhos dos cidadão, uma guerra de capelinhas sem sentido. Quando o que está em causa é a qualidade pessoal dos líderes políticos, os cidadão não têm nenhuma capacidade de corroborar qualquer argumento. Conhecer as qualidades pessoais de alguém implica conhecer pessoalmente a pessoa em causa.

Ainda assim, estou longe de dizer que os partidos são todos iguais. Pelo contrário! As diferenças, não obstante, aparecem camufladas pelo que disse atrás deste discurso. A política fetiche, mapeada no ponto B, preserva a forma e boa parte dos elementos de conteúdo da política propriamente dita, definida no ponto A. Quando a política é tratada como uma guerra de capelinhas, como há um ano foi reduzido o debate sobre a Reforma Constitucional, estão em causa valores morais e visões sobre a economia importantes. Mas essa guerra de capelinhas, essa política fetiche, serve para camuflar as suas consequências, sobretudo para os perdedores. Não fazê-lo, faria o partido perder votos. (Daí que não seja irracional dizer que ninguém expõe tão claramente a posição de outro partido que o seu adversário).

16 de Abril de 2011 Posted by | Partidos, Sociedade portuguesa | , , | Comentários Desativados em Política fetiche